domingo, abril 03, 2005

[outro] primeiro corte.

Segue por essa rua suja durante três ou quatro quarteirões até encontrares à tua esquerda uma escada íngreme. Tem cuidado com os degraus que parecem poder ceder a qualquer instante. Sobe-a sem olhar para trás, mas por favor não te esqueças de contar cada degrau, um a um, como se ainda fosses uma criança. Lá no alto, uns metros à tua frente descobrirás uma barbearia de aspecto bastante rude. Entra e senta-te na única cadeira que lá se encontra, mesmo em frente ao espelho. Fita o teu próprio olhar por um breve momento. A barba, por favor – não precisas de dizer mais. Em gesto afirmativo verás um velho a pegar numa navalha, se estiveres atento não deixarás, por certo, de constatar que a lâmina desta se encontra um pouco enferrujada. Ele dir-te-á a verdade: Vou ter de o fazer com água fria, senhor. Tudo bem. Sentirás a fria navalha a tocar-te na face, a percorrê-la, e, ao reparares na trémula mão que a segura, não é de admirar que te ocorra a ideia de que vais ser degolado ali, naquele exacto segundo que será tão longamente precioso. Mas não te preocupes. Nunca ninguém lá morreu. A vossa companhia será uma voz rouca e uns trompetes desafinados que insistem em querer sair do seu cárcere. Este não passará de um gramofone que parecia já ser antigo ainda antes do velho ter nascido. Perceberás que não importa que ano é este.
Tu não estás no teu tempo.
Uma das paredes encontra-se forrada com recortes de jornais; algumas efemérides, memórias parcas e sem futuro. Uma outra parede tem apenas uma fotografia a preto e branco, emoldurada, de um jovem casal. Ela; um pouco feia mas sorridente. Ele; de cabelo curto e arranjado, pelas suas feições saberás de quem se trata. Será porventura a dicotomia mais estranha que possas imaginar. Um pequeno mundo compartimentado dentro de algo maior. Sentirás no ar o cheiro a mofo - é todo um espaço carregado pelo severo peso dos anos que inexplicavelmente se ergue. Não tentes compreender o porquê de estares ali. Não há razão alguma que justifique o que o destino nos reserva.
A dado momento repararás nas gotas vermelho-sangue que brotam da um ligeiro corte no teu rosto. Não sentirás dor devido à água fria que te gelou até ao tutano dos ossos. Fecharás os olhos num simples acto de submissão perante a sensação que não consegues descrever. Perceberás, então, que foste marcado.
A Navalha.


(P.)

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