quinta-feira, setembro 14, 2006

Analord

O facto de, agora, não ter trabalho, não quer dizer que não esteja a trabalhar imenso. Serão cinco minutos – aqui, mais uns dois ali, no fim do dia devo ter uma paragem de dez a quinze, acho que suficientes para o texto – guardo tudo no Bóris e abalo pelas nove da noite para casa. Profissão liberal – muito, muito sedutora e, também, algo stressante – até para mim, neste momento encarregue apenas de escrever declarações, preencher contratos de arrendamento, ir ocasionalmente ao tribunal entregar o que quer que seja (embora tal ainda não me tenha acontecido), procurar dados em processos de empresas, sociedades, desencantar do fim do mundos números de B.Is e números de pessoas colectivas. O texto estará seguido, mas pararei decerto muitas vezes.
Estou num escritório de advogados da avenida Gago Coutinho, entre a rotunda do relógio e a “outra” – no areeiro. É uma forma diferente de acabar as minhas férias, estas últimas três semanas em que faria pouco mais que tocar harmónica, sair por aí, e dar uma vista de olhos às fotocópias que tirei de livros em alemão e espanhol para apresentar as minhas duas orais de melhoria. Eu queria poder, pelo menos, escrever uma história qualquer – não tinha nada em mente, mas pensava num casal e uma espécie de diálogo entre os dois invertido, e de trás para a frente, algo sem muita forma.
Um Ele e um Ela. Ando um bocado fora de tudo ultimamente, será talvez de uma ressaca (in)esperada do mês de Agosto que passei.?, acho que é possível. Não tenho estado muito com amigos, não tenho feito muitos esforços nesse sentido (nem eles), não tenho tido a necessidade, grande, de estar com pessoas de quem gosto e com quem gosto de estar – parece que as memórias têm sabido melhor, vá-se lá entender essa estranheza. Comprei uma harmónica há pouco tempo, apesar de já ter a ideia na cabeça há meses, e tenho-me divertido a tocá-la, quando quero apenas relaxar; não toco bem, ou ainda não toco bem (nem sei como se deve tocar, soprar ou segurar uma harmónica) mas lá me tenho divertido. O som sai sempre bem, pelo menos para mim. Claro que ainda não faço coisas complexas, mas estou certo que lá chegarei. É apenas uma questão de tempo até me apaixonar pelo instrumento.
Tenho tido saudades de certas pessoas, sim – mas não quero vê-las. Isto é tremendamente estranho, quase uma novidade para mim. Mas eu queria mesmo contar uma história, pelo menos narrá-la. Só pela necessidade de escrever algo que não seja autobiográfico – ultimamente, parece que é tudo aquilo que escrevo. Um ele e uma Ela. Sempre um ele e uma Ela, o mundo parece girar à volta dessas duas personagens – ou seja, as histórias entre duas pessoas parece que já foram todas contadas, ou parece que nenhuma história, entre duas pessoas, é nova. E porque não tentar mudar isso? Porque não tentar descobrir algo diferente na normalidade?

Anteriormente escrevia no sentido de tentar encontrar, ou escrever, a maior anormalidade possível numa qualquer peça de escrita. Hoje em dia, satisfaz-me muito mais tentar encontrar uma anormalidade não menos maior, adormecida, numa normalidade parente, estóica, quase como um dogma. Apetece-me fazer piadas, beber até cair, sentir-me zonzo e só ver pontos brilhantes à frente do olhar. Estar na escuridão total no meio da rua. Apetece-me rir imenso e estar com pessoas que também se riam imenso. Mas toda esta letargia, este fora do mundo, me tem sabido tão bem.

E agora, a minha hora de almoço acabou. É tempo de voltar a corrigir sentenças.




J.

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