segunda-feira, março 26, 2007

Sobre "Os Grandes Portugeses".

[Abro, excepcionalmente, na minha cabeça e n’A Navalha, um pouco de espaço para falar de um programa de televisão.]

Acabou mesmo há bocadinho o programa da RTP. O vencedor foi António de Oliveira Salazar. Foi um concurso de popularidade mascarado de documentário histórico que teve hoje o seu fim. Foram vários os episódios desta saga; quanto a mim, vi hoje pela primeira vez, a espaços, um dos programas. Este último.
Não me interessa dissertar sobre o impacto social deste programa, sobre as motivações de quem votou em quem. Não me interessa saber por que razão há sempre um certo saudosismo nos portugueses quando se fala no passado. Desde o início que me incomodou este programa. A sua estrutura surreal, que nos concede este direito mentiroso de escolher quem foi o maior português. E toda a estranheza: como escolher uma figura principal, quando entre os “candidatos” distam séculos de intervalo? Mais do que isso, como comparar um político, a um poeta, a um navegador, etc., e esperar que no meio de tudo isso haja uma comparação racional.
Não há. Só pode ser feito por brincadeira. E é como brincadeira que vejo “Os Grandes Portugueses”. Parecia óbvio, especialmente vendo à distância, que os mais controversos, e com probabilidade de terem mais votos, seriam sempre figuras do século XX. Era natural. É a memória a funcionar. Mas também há apenas 40 anos, Portugal era bem diferente. E Salazar era temido em Portugal. E criticado e gozado fora do país. Poucos choraram quando, após anos de ditadura, foi uma velha cadeira quem assassinou o pobre velhote, já gagá. Se a revolução de Abril, há 32 anos atrás, não foi violenta, nem sangrenta, ao contrário de todas as revoluções que se viram nos outros países, foi porque havia um consenso geral entre quem pensava a política em Portugal. As pessoas tiveram a “sorte” de a sentir na pele e na voz. Salazar e o seu legado não eram merecedores de vassalagem. Por isso o sistema estabelecido foi demitido.
Será natural, ao longo desta semana, ouvirmos e lermos em todo o lado sobre o por quê de uma vitória de Salazar. Que sim, que os portugueses estão insatisfeitos com a vida que a democracia lhes deu, que sim, que é só um concurso e que é apenas reflexo de quem, por Salazar, se soube dinamizar como pelos outros “candidatos” – e uso aspas porque acredito que nenhum deles quisesse ser sufragado por algo assim tão comezinho – ninguém o soube fazer.
Também não é isso que me importa. Certamente que foram muito menos os portugueses que votaram em Salazar, para grande português, do que aqueles que votaram no alentejano Zé Maria, quando se tratou de saber quem era o último a sair da casa no primeiro Big Brother, há uns anos atrás.
Também a televisão nos reserva destas pequenas mentiras.
Não sei. E é algo que vem desde há muito, mas eu não sei o que é a tão falada portugalidade. Não sei se é o fado, se as praias ou o vinho tinto. Se os pratos típicos ou as novelas que aprendemos a fazer, vendo as históricas novelas brasileiras da Globo. Não sei sequer por onde paira a minha própria portugalidade. E confesso um certo embaraço por isso. Não vergonha, entendam-me, apenas embaraço.
Sim, desconhecemos em boa parte Salazar. Em parte acho que o homem, como ditador, como filho da puta, que sinto que era, era-o filho da dita cuja com “p” pequeno. Nem como ditador foi grande. Foi um ditadorzeco comparado com tantos outros homicidas, e até genocidas, que um dia tiveram o poder nas suas mãos. Uma figura cinzenta, sem humor, algo sinistra, até. E para muitos um fantasma demasiado difícil de ser estudado. Mas tem de o ser. Para o bem e para o mal, é preciso saber ao máximo a razão que leva uma pessoa inteligente, aparentemente lúcida, a escolher a ganância, o crime, a ditadura. E acho que este programa de televisão não contribuiu em nada para isso. Nos seus cartazes de propaganda, Salazar surgia como D. Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal. Ele queria mostrar-se como um verdadeiro herói. Ironicamente, é já morto que atinge o seu auge. Sabe-se lá quantos milhares de portugueses o colocaram esta noite, acima de qualquer outro português na História, acima até das melhores expectativas de Salazar. Afinal de contas, décadas depois, os livrinhos adulterados de escola que Salazar vendia à mentalidade “povinha” surtiram efeito…
E tudo isto foi, no fundo, só polémica, à boa maneira portuguesa. Fez correr tinta, e muita mais há-de fazer correr. E não creio que demore muito tempo até ser recordado como um programa caricato, idiota. E também nisso a posição da RTP sai prejudicada. Queriam, pelo que disseram, despertar a atenção dos portugueses para a sua própria história. Acabaram por embandeirar quem não queriam. Esperemos ao menos que as audiências tenham compensado.
Eu, por mim, sempre me senti na necessidade de desvalorizar o programa. Hoje faço exactamente o inverso. Precisava de me explicar, de contar o arrepio que certas coisas me provocam. Eu nunca poderia saber escolher quem foi para mim o maior português. Não desta maneira, com esta coisa toda “popularesca” à mistura. Fiz o que achei melhor: não votei.
Não foi suficiente para tudo o resto. Mas foi suficiente para mim.







P.

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