sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Infiel.

Abro agora um parêntese naquilo que são, desde a origem, as linhas directrizes d’A Navalha. Tanto eu como o J. nunca tivemos pretensões de críticos, mas confesso que sinto necessidade de não me escusar a um assunto esta índole – falo, como se calhar alguns já presumiram, das tão badaladas caricaturas de Maomé.
Em primeiro lugar, queria salientar alguns dos factos de toda esta polémica. A 30 de Setembro, do ano que acabou, o jornal dinamarquês Jyllands-Posten publicou uma série de caricaturas que figuravam Maomé, profeta islâmico. Ora, qualquer representação do profeta é considerada uma afronta – no entanto, pelo que tenho lido em vários órgãos de imprensa, os textos sagrados nada referem sobre uma efectiva proibição. A 17 de Outubro, o jornal egípcio Al Fagr publicou seis das caricaturas em causa. Na verdade, a publicação destas não teve grande relevância por essa altura. Cerca de dois meses depois, quando o tema das caricaturas foi debatido no seio da Organização da Conferência Islâmica (que juntou vários líderes muçulmanos), é que se formalizaram protestos, levando à crise da qual já todos ouvimos falar.
No meu ponto de vista, creio que é restritivo reduzir toda esta questão a simples liberdade de expressão. Esta, é um direito inegável, porém traz consigo um valor de responsabilidade intelectual que não deve, não pode, ser ignorado. Perante isto, acrescento que sim, há algo de idiota e inconsciente por parte do autor – e de quem publicou – das caricaturas. Mas será que isto serve de desculpa às cenas inomináveis a que temos assistido? Ainda hoje a embaixada francesa em Teerão foi atacada por uma multidão raivosa, perante a passividade das autoridades. A Igreja Católica (apostólica romana, por exemplo, deve envergonhar-se do tempo em que se deixou manipular como arma política no período negro da Inquisição. Mas, nos nossos dias, perante aquilo a que temos assistido, a quem podemos exigir responsabilidades? Parece-me uma postura esquiva achar que a culpa é exclusiva de um jornal dinamarquês (que já apresentou por duas vezes um pedido de desculpas formal), que não previu as consequências dos seus actos. Mais ainda, considerar que estas manifestações violentas são mero fruto da indignação individual de muçulmanos revoltados, é não ter em conta o que os move.
São protestos, na maior parte dos casos, organizados e não espontâneos, entenda-se. Muitos dos líderes de grupos extremistas islâmicos são teólogos, homens ricos, que tiveram acesso a formação superior. Mas quem coloca as bombas no corpo, e se rebenta no meio de transeuntes, gritando por Alá, são muitas das vezes pessoas que não tiveram possibilidade de escolher, que se viram forçados a viver na miséria, sem possibilidades de educação ou de qualquer outro recurso que lhes desse a possibilidade de ver toda esta situação sob outro – qualquer – prisma. São eles a “carne para canhão” enviada para a morte em nome de uma fé narrada por interesses políticos, sociais e económicos (tão poucas vezes religiosos) – são as balas disparadas por fanáticos poderosos que não tiveram a “dignidade” de levar a cabo, a custo do próprio corpo, a Jihad que tanto apregoam.
Grita-se pela morte da Europa, pelo ódio, por uma fatwa perversa, pela punição do gigante anómalo que é o Ocidente. E sim, a aculturação que sobre os muçulmanos é exercida é complexa, insensível, não levando em consideração o contexto em que se verifica. Mas nada desculpa aquilo a que assistimos.

Posso – e faço-o – considerar o privilégio, o direito que tenho em poder falar. Não teria a coragem, fosse eu muçulmano em algum dos países mais extremistas, a dizer o que penso – sob pena de ver as minhas mãos decepadas (metafórica e, quem sabe, literalmente), de ser preso e executado sem questionar. Talvez tivesse a minha cabeça a prémio por alguns milhares de euros. Sei que falo porque posso: se é pela ilusão de anonimato que a Internet proporciona, se pela democracia (tantas vezes falível, convenhamos) que rege o mundo em que habito, pelo que seja, pouco importa, a verdade é que ainda posso falar.
E por ora não direi muito mais; apenas que me sinto envergonhado caso as instituições democráticas que me representam como cidadão desculpabilizarem, com base no argumento da “tolerância”, o que temos visto – a violência sem escrúpulos, seja em que circunstância for, é intolerável e repudiável.
Etimologicamente, a palavra “herege” significa “aquele que escolhe”. Só posso dizer que assim me sinto e, como tal, escolho. Temo é que rapidamente a escalada de violência seja de tal ordem que se esqueça o que a provocou. As caricaturas têm muito de absurdo, mas sejamos sérios, tudo isto não se trata de meras caricaturas, pois não? Manifesto o meu NÃO ódio. Manifesto a minha estima pelos muçulmanos em geral. São, de facto, os casos específicos que me preocupam, como o dos fanáticos que se serviram das caricaturas para espoletar a sua “guerra santa”.

Infiel, como vocês.









P.

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