sábado, março 25, 2006

Crítica a " homem-fêmea".

Pensava em não sentar-me, nunca escrever esta crítica, não só por me considerar indigno (as obras de P. parecem produzir esses deliciosamente nefasto efeito em mim), mas também por me considerar incapaz. Enfim, podia especular sobre as escolhas que me levaram a fazê-lo, mas a única prende-se com o amor: amor pelo P., pela sua obra, pelos contornos do seu corpo que admirei de longe quando, numa festa de beneficência para crianças com síndroma de asperge, tivemos o prazer de nos cruzar. Entre dois copos de porto branco seco, mas o meu com um dedo fino de aguardente velha em balão, por favor, dizia ele, explicou-me que toda a arte era os testículos que descobriu que a sua avó tinha, com cinco anos, quando deixou cair os playmobil para debaixo da sua saia rodada com um lagarto desenhado. Se formos bem a ver, tudo são os testículos de uma mulher, numa roleta de casino atados aos postes da indiferença imoral, e neo-contemporânea,explicou-me.; Pois o presente morreu à muito.
O que nos traz para esta nossa obra, o homem fêmea. Ao primeiro relance reparo logo no ponto principal do quadro, enquanto tema recorrente: o cavalo (mais uma vez) à espreita em todo o quadro. Desta vez, com a composição de cores e luta entre o redondo/recto, P. deu-lhe um nome: Ezequiel, ou Jeremias, não sei bem discernir a diferença e ter uma certeza, enquanto mero iniciado. Mas é notório, claro. Todo o quadro é quase, como que uma vinheta, em que Ezequiel, o cavalo, percorre as planícies de metal que povoam o imaginário de P. entre o vértice inferior direito e a terceira linha riscada, vemos uma escultura de uma mulher feita em vómito solidificado – e não será apenas este caminho com o abstraccionismo melódico uma forma de provar, com a língua e com as axilas, o sabor da composição das cores nos quadros de P.? aqui, elas dizem muito mais do que o nome do cavalo, mostram um pintor tentando desesperadamente fugir às amarras do sexo, e da comida – grelhada, claro está, que para os puristas, não tem sabor. Como entendê-lo? Que não se o tente. E como explicar a mulher a beijar a estátua, desenhada claramente num estilo híbrido, quase como se Miro tivesse sido fauvista? Pois o olhar fauve espreita por todo o quadro – é suposto as cores estarem invertidas, as formas inchadas, os dois amantes disformes enquanto segredam um ao outro, pela composição corporal, o carro que irão comprar daí a dois anos e meio.
Tudo isto me custa. Falar da obra de P. não é falar do presente – é falar do futuro, que ainda está para vir. É tentar encontrar –ismos, para o que ainda está para vir. P. envergonha Kandinsky, escarnece dos parcos críticos que ainda tentam colar P. às raízes surrealistas do suprematismo (!), e, enfim, espanca com palmadinhas no rabo os expressionistas, como um mestre os seus alunos, mas pouca força por favor.
E P. faz-nos sentir pena de Ezequiel, mesmo que saibamos que ele pisoteou um mendigo na sua fuga até ele morrer – e acreditamos que até os cavalos feitos de cristal podem viver, sobreviver, e espantarem-nos com os seus galopes inconstantes de freira, em mares de cinza chorados que, genialmente, aparecem da parte de baixo do quadro. No fim, tudo se conjuga, tudo faz sentido – e tudo aquilo que apenas consigo ver, quando pouso o copo com compal, é um par de testículos – um par de redondos, peludos testículos, pertencentes a uma velhinha pura, cheia de vida, rindo-se de um miúdo que aos cinco anos decidiu pela primeira vez, ao olhar para o tecto ao invés de para os playmobils no chão, sonhar.
Tudo o resto são pontes feitas de unhas.




















J.

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