quarta-feira, março 22, 2006

Crítica a Mundo Cão.

Já dizia Cervantes, enquanto tomava o seu copo de chá, que toda a bosta se erguia nos nossos sonhos para nos atormentar na vida real. O escriba não sabe se, tendo de facto em conta a mediania do escritor, tal se pode aplicar a tudo na nossa vida: mas se a P. esta regra é também universal, pois bem, ele acaba de ser o primeiro poeta a, categoricamente, pegar nessa bosta e transformá-la na maior coisa desde que este mundo viu nascer Pessoa, ultrapassando-o largamente.
O poema Mundo Cão não merece sequer ser transcrito – a sua beleza ultrapassa qualquer forma de papel que o esteja disposto a albergar. E, no entanto, antes de se ler, sequer, o poema, ninguém pode ficar indiferente à forma emocionante (e que, decerto, fará imediatamente emocionar as pessoas mais insensíveis) como as estrofes dançam no papel, num desenho que poderia lembrar perfeitamente a cabeça de um cavalo – se rodássemos a folha para a esquerda. P. não se limita a escrever, maravilhosamente, e a colocar perguntas novas que nenhum poeta antes se tinha lembrado – ele mescla artes num desígnio tão genial quanto esotérico, tão simples quanto sublime, tão árido quanto húmido.
Mas, e o poema em si? E, senhores – que poema. P. consegue, neste poema específico, o impossível – une estilos poéticos aparentemente irreconciliáveis, diz o nada sem dizer tudo, e o tudo sem dizer, ainda assim, o nada, conseguindo sobrar alguma coisa para outro tudo ou outro nada dizer. Vejo automaticamente uma junção com a escola pós-modernista alemã e o futurismo português, com a presença, incontornável (ao fim e ao cabo, o ponto de honra da genial obra de P.!) do dadaísmo pré-surrealista dos anos, polvilhando, aqui e ali, com um sensacionismo telegráfico que fria Whitman corar, aplicando as regras arquitectónicas da falecida escola Bauhaus, provando que a poesia pode servir-se da arquitectura para, qual edifício belo de olhar, e de se viver (pois vivemos nos poemas de P., como na mais deliciosa prisão sem possibilidades de liberdade condicional), se estruturar como uma estátua de Magritte, se este tivesse sido, para nosso deleite, escultor, evidentemente. Apenas podemos imaginar.
E este Mundo Cão, meu Deus, como se desenrola – a primeira estrofe termina numa genial onomatopeia, no uso mais genial de uma onomatopeia que eu vi desde os trabalhos de Fernando Pessoa com 17 anos (para os conneiseurs, de facto, o período mais prolífico e genial do célebre, mas não genial, poeta) – o woof woof faz-nos recordar a nossa condição de homens, de bestas pacatas enquanto lemos os poemas de P., pois é justamente de odiosas bestas que nos tratamos, por não o conseguirmos compreender. E P. sabe-o, mas, benevolente, dá esta pérola ao leitor, um memorando gentil para abandonar a leitura nesse preciso instante, e nunca mais tentar compreender a genialidade fulgente deste Sol, vivendo para sempre na mais completa das escuridões; e, ainda assim, a onomatopeia faz a ponte entre todo o século XX (que começa, obviamente, apenas com o quadro de Picasso, as mademoiselles de Avinhão), a nível artístico, e o início deste novo mundo; e P., incrível, sabe-o, e é quase como um murro na cara, de fazer soltar o sangue, o gritante choque do woof woof – que é tanto mais do que uma simples expressão, onomatopeia, palavra. Transformada em números anuncia a data da segunda vinda de Cristo, invertida, anuncia o nome da nova corrente estilística na arte fotográfica que virá daqui a sensivelmente dezassete anos. O Eu, cão, anterior, e o uso do travessão – meu Deus, aquele travessão! Como uma faca a provocar o woof woof, que ainda assim brilha no seu esplendor, sem medos, e rouba o momento alto da primeira estrofe! – Transportam o poeta de imediato para outro mundo – é de todo óbvio que ele não se limita a falar pelos olhos de um cão – P. É o cão, transformou-se num cão, teve de simplificar a sua arte ao máximo para este mundo a compreender, e, na melhor das hipóteses, suportar. Nosso superior, fez de nós seus donos, ao nos dar a sua poesia e admitir a sua condição, física – e, de novo, a onomatopeia a provocar as primeiras lágrimas.
Dever-me-ia ficar por aqui, pois sou indigno – sinto-me indigno – de escrever acerca de um poema de P. De referir apenas mais uma onomatopeia na segunda estrofe, estrofe essa que se prolonga um pouco mais que todas as outras, dizendo que a poesia é sofrimento, é levar os olhos até ao fim da folha, mas recompensando-nos no final com duas estrofes mais curtas, e uma última exigindo um último esforço; de referir a forma como o poema acaba, numa interrogação declarativa – como, afinal, toda a vida fosse uma interrogação sem resposta possível, não valendo sequer a pena colocar a pergunta a nós mesmos, ou ao leitor – enfim, se P. não consegue, ou não quer responder à questão por ele mesmo formulada, não seremos nós que o conseguiremos. Mas o oh como me poderia eu coçar parece querer dizer tanto, e significar tanto, como uma lembrança à nossa condição, como uma metáfora para os conflitos adormecidos na Coreia do norte (sendo a segunda vez no poema que o faz, já que muito declaradamente nos relembra para esse problema adormecido na forma como coloca, sem virgula antes ou depois, a palavra ladro, como um grito de revolta), como, enfim, o próprio desespero do poeta em sobreviver a esta vida fútil e estúpida… concluindo, muito mais poderia ser dito sobre este genial poema de Pedro Pina, que o coloca em terceiro na linha de sucessão normal da nossa poesia – Camões, Pessoa, e P. e, quando a leitura acaba, nada mais resta – apenas um vazio, o sabor do sal seco das lágrimas na fronte, uma fome de nos sentirmos violados, pois até isso nos lavaria da sujidade com que P. nos brinda quando desviamos os olhos da sua poesia e olhamos para o mundo em frente. E, ainda assim, antes de me deitar e adormcer, não é só o poema inteiro que me sai da cabeça. É uma quarta estrofe, mais alta que as outras, mais furiosa que tudo o resto, como uma verdade universal, um grito de guerra, e ainda assim, talvez, uma esperança que a humanidade pode melhorar com a poesia de P. - e ladro.
Resta-me uma estrofe de Pessoa, que se coaduna perfeitamente com este momento, e me deixará, finalmente, no silêncio:

“Now she is risen. Look how she looks down,”























J.

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