Cartas ao meu sossego, parte I.
Vestiu a gabardina cinzenta e levantou os colarinhos, para poder esconder as orelhas e o queixo do frio que fazia lá fora. colocou as luvas, o cachecol por cima de tudo. inspirou fundo antes de abrir a porta. sentia-se a geada, na primeira manhã de fevereiro, e a rua acordava de mansinho para mais um dia normal. caminhou ao longo do passeio, uma ou outra luz de néon piscava timidamente – um homem mais à frente rodava a chave para as grades metálicas se erguerem, rangendo. tirou do bolso uma cigarrilha, solta. todos os dias tirava do bolso uma cigarrilha perdida, como se fosse o seu único truque de magia. isqueiro a gasolina, a chama a tremer, resistindo, uma baforada pequena, seguida de outra, e uma mais longa. caminhava. um pouco mais próximo do silêncio. ele procura, ainda que não se encontre, por tudo o que o traga de volta. meses antes passava por esta mesma rua, na cidade que nunca conhecera, na tentativa de se defender. já nessa altura tudo era mecanizado, cada gesto possuía a força de uma lógica imperceptível, como se não pudesse fugir das contas que o destino decidira por ele. sentava-se na mesma mesa, junto à parede, mão esquerda apoiada, mão direita segurando a chávena de café, pousava a chávena sempre com o símbolo virado para o peito, rodava ligeiramente o copo de água e só então olhava em volta, só para se certificar da sua própria discrição. nada mudava. por essa altura, ainda antes de tudo acontecer, questionava-se sobre quem tomaria o seu lugar. responderia, caso o chamassem pelo nome? atravessou ao sinal verde para os peões, e uns metros mais à frente virou à esquerda.
abrandou o passo enquanto olhava para o relógio. depois deu uma passada mais forte, seguida de outra - sentia a pressa a impulsionar a passada seguinte até perceber que corria. ainda tinha alguns minutos. a ansiedade faz esquecer a vontade de tossir, pensava – e já só conseguia correr. tudo se conjugava agora à sua frente, afinal fazia sentido ser desta maneira. o cachecol serpenteava ao vento, tocando-o ao de leve nas costas só para se voltar a erguer, e ele não parava, passa por um miúdo a atar os ténis, o puto espantado. e ele corre. falta só mais um pouco, vira novamente à esquerda, quase atropelando uma mulher. pensava ele que com o tempo já tinha aprendido a ser mais calmo, mas está quase. está mesmo quase. sim. em breve saberá. já a vê. só pode ser, e está a cada passada um pouco mais perto. mas ela vira-se, de costas, afastando-se, e o instinto diz-lhe que levante o braço, em desespero, como se a pudesse agarrar se ao menos conseguisse esticar um pouco mais os dedos e no preciso momento em que vai gritar Espera ela pára, a palavra presa na garganta, o braço a baixar obedientemente, enquanto ela se vira, preparada para o olhar – e já as primeiras gotas de chuva do dia começam a cair na diagonal, como se fossem pequenas navalhas lançadas dos prédios.
P.
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