quinta-feira, agosto 25, 2005

jovialidades. - O idiota, parte um.

Marluce é uma simples funcionária pública. O seu nome não se sabe ao certo se é artístico ou se de arte tem apenas o facto de se tratar de uma piada sarcástica dos seus pais. Na repartição de finanças onde trabalha habituou-se a ouvir as queixas das pessoas, os seus bocejos e suspiros. Mecanizou-se para assinar e carimbar. Boa tarde, diz. E esquece as faces. A razão por que vos falo de Marluce é tão simples e entediante quanto ela. Vive sozinha, solteira, sem filhos, sem animais de estimação, ou um particular interesse pelo que quer que seja.. Não foi violada em criança. Não vem de um lar desfeito. Era filha única mas nunca pediu uma irmãzinha quando era pequena. Nunca se lançou em cruzadas para salvar o mundo. Apaixonou-se umas poucas vezes. Desinteressou-se sempre. Sai poucas vezes com as amigas e é sempre a que menos fala. Nunca tem muito por contar. Esqueceu os sonhos com o passar dos anos como qualquer cliché que se preze. É um lugar comum em si mesma; sabe-o, mas não se importa lá muito com isso. A sua única particularidade, para além dos romances pitoresco-coloquiais que vai devorando amiúde, é o perverso prazer que tem todos os domingos à tarde. Fuma sete maços de tabaco, de sete marcas diferentes, durante sete horas seguidas, para não se dar ao trabalho de dosear o esforço e ir fumando durante a semana.
Há umas poucas semanas faltou ao emprego pela primeira vez em vários anos. Cortara-se enquanto descascava a fruta. Ficou a observar as gotículas de sangue que brotavam do dedo. Depois, deliciou-se a lamber o dedo e deixou-se ficar, até ao dia seguinte.
Hoje é o dia do seu aniversário e nem sequer isso parece suficiente para narrar o que quer que seja que se possa considerar digno de uma estória. Irá jantar ao restaurante chinês da esquina, com as mesmas amigas de sempre. Se se sentir aventureira talvez chegue mesmo a pedir um prato diferente. Ao chegar a casa olhar-se-á no espelho, nua, e sorrirá subtilmente ao ver as primeiras rugas a aparecer e a celulite que se decidiu por colar-se, irremediavelmente, às suas nádegas. É uma mulher demasiado comum para merecer o desígnio eufemista de conformada. Mas na noite que se aproxima ela terá, pela primeira vez em muito tempo, um plano. Escondido na gaveta das meias está o caderno vermelho, de capa grossa, que usara, nos finais da sua adolescência, na década de oitenta do século que morreu, como diário. E o plano é agora nítido. Ela percebe. Faltam dois meses para morrer e Marluce já o sabe: assim que terminar de encher as folhas brancas do seu fiel caderno com palavras mundanas acerca dos seus dias decrépitos, ela vai suicidar-se. Apesar do seu instintivo prazer em observar e saborear o seu próprio sangue, ela não vai dilacerar os pulsos. Marluce vai engolir todos os comprimidos que a sua garganta suportar. Irá perder a consciência e ter a divina morte de sufocar no seu próprio vómito. Uma overdose típica de uma moderna burguesa – frustrada. Consigo levará poucas fotos. Só ao fim de alguns dias a descobrirão, na altura em que o avermelhado dos lábios indica o princípio do apodrecimento do corpo. Não será chorada, como era seu desejo. Será esquecida. Morrerá como viveu, passe o moralismo ateu: Marluce, a mulher que insistiu em não existir.



E conseguiu.







P.


(P.S.:Daqui a poucas horas embarco num avião para Malta, voltarei dentro de oito dias; a navalha manterse-á, naturalmente, activa. o regresso do eterno profeta canino aproxima-se. Sê bem vindo, j. Até breve, a todos.)

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