Quarta-feira; andorinha; palhaço.
Habitava um palhaço triste na parede do meu antigo quarto. Algibeira de fora, calças rasgadas, calvície denunciada, algumas rugas visíveis que contavam a sua idade incerta. Palhaço que era, tinha uma batata vermelha – será esse o termo técnico? – no lugar do nariz, um pouco esbatido. Certa vez, esticou os braços, debruçou-se até a sua cabeça ganhar forma, colocou, a custo, um pé no chão, depois outro, ficou parado por um bocado até que começou a andar, de forma torpe, dormente; saiu porta fora.
Chegado à rua, sentiu necessidade de tapar os ouvidos pois já não estava habituado aos ruídos da cidade. Prosseguiu caminho. Quem passava por ele estranhava ver por ali um palhaço que não sabia sorrir. Não se deteve. Andou de tal maneira que a dada altura deixou de ver prédios e carros. Havia apenas uma estrada que desaparecia no horizonte. Andou e andou até que do dia se fez noite. Mas não parou. Numa Quarta-feira de um Dezembro longo e frio chegou, por entre o nevoeiro, a um desfiladeiro.
Sentou-se numa grande pedra e, finalmente, descansou.
No céu voavam gaivotas ferozes, de sangue frio, que desciam sobre as águas a uma velocidade estonteante apanhando peixes incautos, de parca memória. Entre as gaivotas, nesse mesmo céu, estava uma andorinha que, perdida, pairava. O palhaço pobre fitou-a longamente. A certa altura, a andorinha decidiu descer dos céus e veio poisar, numa outra pedra, mais pequena, a escassos dois metros do palhaço. A andorinha esperou um pouco e falou:
- Que fazes por aqui, palhaço triste?
- Eu – disse o palhaço – devo ter morrido e fui parar a um céu que não era deste tempo, estrelado, cósmico, magnético, tenho vivido no papel gasto pela saudade, essa, que diz que tudo era bom, imaginativo, alegre, sim, e devo ter regressado, vejo-o claramente: serei mau ser, psicadélico. E que me podes dizer, ave falante?
Sentados estavam, nessa vez que seria única; a construção de um conto.
- Tu e eu, que temos em comum? – perguntou a andorinha.
- Fomos extraídos da mesma estirpe, como raízes de plantas inexistentes, e eu tenho saudades da minha sombra, de quem sou. Sinto ausência.
Como a sinto.
Era um palhaço pobre. E onde eles estavam, em acto de desculpa, era um lugar de uma voz inconsciente, vibrante, que lhes pedia que se unissem.
E assim foi.
…
No céu voavam gaivotas ferozes, de sangue frio, que desciam sobre as águas, violentamente. Pararam por momentos, despertas por um feixe de luz violeta que não poderiam reconhecer, algures entre as pedras. E continuaram a sua perseguição.
P.
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