sexta-feira, março 03, 2006

Que aconteceu à fúria?

Lá fora, entre minas abertas à decomposição das cores cinzentas do fim do Inverno, alguém sabe. E toda a gente foge, à sua própria resposta. Ontem vi histórias a serem contadas, amores que desapareceram e outros que renasceram perante mentiras bem desentrançadas; existiram os ocasionais espancamentos, mas a invisibilidade da cidade apagará os traços de sangue do chão – chove, mesmo agora. Não são casos que procure estabelecer – desde quando é que, de repente, as palavras certas começaram a ser ditas…? Todas, por qualquer pessoa? São incríveis, todas as histórias que ouvimos, que sentimos, no ozono que passa pelo ar. Mas, que aconteceu à fúria? Por vezes as perguntas não significam nada. Mas, se as fizemos, se elas surgiram na nossa cabeça como uma dor que precise de ser destruída, apagada como uma cor que se desvanece na escuridão da mente – porque é que não havemos de acreditar que ela é tão real quanto tudo o que de resto se passa?
O que é que aconteceu à fúria? A toda esta fúria, que faziam os homens serem selvagens na forma lúcida e cheia de sentimento com que viam a vida, e as mulheres corajosas e únicas como se cada uma tivesse o seu nome apenas, irrepetível? “foi tudo tão real, tão demasiado real”, gosto de pensar por vezes, lembrando-me dessa música. Que aconteceu à minha própria fúria, que me fazia querer morder todos os dias com um apetite de gigante, maior que tudo?
Súbito ele ri-se, encontrou-a há alguns dias no mesmo sítio, sempre que lhe passava cuspia-lhe ou dava-lhe uma esmola sob a forma de um olhar. E eu penso que já vi isto, ou pelo menos que já imaginei isto – essa fúria que desapareceu levá-lo-ia a …a? Quais são as histórias lúcidas que um dia todos inventámos?
Algumas pessoas não sabem pela primeira vez que sentiram o sabor ardente inconfundível da paixão, do desejo e quem sabe, do amor, em simultâneo, mas eu sei, e tinha cinco anos. Uma miúda cigana com uns sete ou oito entra na mercearia em que eu estava, com os meus pais e dava a mão à minha mãe, e nem reparou em mim, suja, com a roupa completamente cagada, e tudo o que vi foi um vislumbre, mas ela pareceu-me mais linda, mais bonita do que tudo – e lembro-me que, de repente, tive pela primeira vez um pensamento criativo, fora de tudo, ou do mundo – quis largar a mão da minha mãe, agarrar na dela, e fugirmos para um sítio onde poderíamos estar só os dois, e ela pudesse lavar-se, para ficarmos juntos para sempre.
Nunca achei piada a esta lembrança, porque sempre lhe conferi a seriedade de um senão. Pergunto-me que tipo de pessoa teria sido eu se tivesse sentido desejo, pela primeira vez, por uma pessoa diferente – por uma miúda normal da escola, por qualquer tipo de criança mais normal. Ao invés disso, escolhi ficar completamente angustiado por uma miúda cigana porca, suja, e de olhos grandes e cara grave, enquanto sentia as entranhas quentes, e a humedecerem-me os olhos. Que aconteceu a essa fúria em todos os outros lados? Que aconteceu ao deixar tudo para trás, procurarmo-nos enquanto corremos desenfreados por uma cidade ou por qualquer outro lugar tentando, ao encontrar o nosso objectivo, encontrarmo-nos a nós próprios?
Exemplos. Fugir, ter com Ela, com Ele, observar a realidade demasiado perto, e por isso ter medo da loucura, que ronda, ou rondava.
A vida é bela. É a única conclusão possível.
O que vou fazer com ela, antes de a matar com a banalidade da condição da minha existência, ainda não sei. Sei que, uma vez, com cinco anos, escolhi amar durante cinco minutos uma miúda cigana, e nunca mais me esquecer dela.
E acredito que, por causa disso, me tornei diferente, e sou diferente.
Hoje.
Lembrando-me da fúria que um dia senti – e que nunca tive coragem para soltar.










































J.

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