sábado, abril 09, 2005

Apontamento.

O cenário é simples em palavras de melodias talvez perfeitas para uma tarde, chuvosa, a cidade pode ser uma qualquer; prédios e ruas em ângulos de câmara com alguma sombra, a toada vem do chão, não vibra mas sente-se nas paredes, é apregoada talvez no andar de cima, andar de baixo, um silêncio no entanto no próprio acto. Encontro-te assim, em sons e vidas de outras pessoas em histórias que um dia me contaram de contornos prateados – talvez que o ritual que estás a fazer, pergunto-te, seja mesmo necessário? Mas dizes-me – um pouco apanhada em flagrante, talvez, por uma estranha calma perante a navalha que seguras entre os dedos;
- O que queres tu dizer com isso.
Se o meu cigarro nessa altura foi arremessado para o chão alcatifado do teu quarto com uma janela que devora toda a luz que se projecta para o quarto, então foi só para me apoiar na cadeira ao pé da secretária, com a mão, papéis rabiscados com uma fúria, depois um freneticismo algo abstracto, tentaste finalmente a ordem, escreveste as cartas. O ambiente está perfeito para
- Uma mutilação.
- Sim, uma de facto mutilação. Sabes-me? Talvez um porquê; pergunto-te. Tu sabes?
Não estás feia só com essa saia pregada azul escura e blusa branca, penso antes de dizer algo observando as cartas. Não, amor, não sei nem um pouco querida, não te estou para impedir de nada, suponhamos tu e eu talvez, que pensamos da mesma maneira e
O quê
Que tu e eu pensamos da mesma maneira, entendes; de que de facto algo hoje se faça sentir, diferente. A chuva confere o tom adequado de cliché à coisa; abriste as cortinas. O teu acto é um sacramento.
Quase um sorriso sentiria eu entre os teus cabelos que caíam cremosos talvez; rodaste o canivete, a faca, entre os dedos novamente, a imagem era incrível; de costas, para mim, ajoelhada no chão, uma mão apoiando-se no chão, a outra preparando-se para cortar algo, virando a tua cabeça para me tentares ver em rasgos de sanidade que sempre tiveras, eu conheço-te; que vidas incríveis levámos os dois, se eu meto a chave à porta e encontro algo com a certeza do meu dia um pouco fratricida, enquanto me amas, me dizes que me amas, enquanto e durante cortas o teu clítoris, porque eu teria sempre de chegar a tempo.
Teria sido um insulto à beleza crua do teu acto feminino e grotesco se tivesses usado um bisturi.
- A luz é a mesma; a chuva cai da mesma maneira se eu te sentir aqui, se eu jurasse que te ouvia mesmo com a música que não é minha mas ressoa aqui
- Porque não podia ser de outra forma
- Então eu ter-me-ia cortado na mesma; quem és tu, porque regressaste? Existes talvez aqui?
Apontas para o coração.
- Podes sentir o medo da minha calma. A minha sensualidade a esvair-se como sangue, os gritos.
- Posso, posso sentir isso tudo.
- Nem sequer o ter trazido um torniquete. Hum…? É quase como quando fazíamos amor, não era…?
Pendeste a cabeça e miraste o cabo em osso polido da tua epifania;
- Violência?
Não direi que a caoticidade se instalou porque a conversa foi tão natural como se na vida nunca sequer te tivesse conhecido, filha da puta. Ias fazer uma viagem…? Mas o corte do clitóris não magoa, não mata sequer, é um entorpecimento do teu ser, se feito a frio, se auto-mutilado, a tua psique destruída, para onde ias, se não fazes sentido fora deste apartamento, como o verão não faz sentido agora;
Lembras-te como nos amamos entre os lençóis que faziam a nossa cama parecer uma jangada
- Nem sequer me escreveste o caralho de uma carta.
Se fui honesta? Não propriamente, não terrivelmente. Tu perguntas-me o porquê mas não me perguntas o quando; o quando me senti num filme mudo, não digo talvez a preto e branco, um retrato a sépia, a janela na noite fazia a minha silhueta mais sensual que eu, assomos de golfadas de onanismo mental…
- Foste abençoada com o dom da lucidez, parabéns
,Se deflagrei um pequeno incêndio no canto da minha boca, era só porque precisava de mais um companheiro entre mim e ela, se queria atravessar o quarto e fitá-la agora de lado, a chuva a querer rebentar comigo e rebentar-me nas suas explosões lancinais de frio.
- Quando é que a ideia te passou pela cabeça, querida, quando é que eu comecei a ficar preso demais a este mundo, se me dizes (porque não choras, não é; porque estás totalmente neutra a sensações de pânico excitante) que cortares parte da tua vagina, do teu clítoris, da tua vulva, faz sentido, O. prazer desaparece, dá lugar a uma fricção absoluta de condenada.
Se o sexo em talvez não fosse nunca sexo, segredamo-nos quando os nossos olhares se cruzaram pela primeira vez onde tu, olhaste para mim, um saxofone silenciou-se ao longe
Tu disseste
Não quero mais o contacto dos teus lábios, perdoa-me queria dizer só lábios mas disse teus, em preces veladas quero que nunca mais as viagens que sozinhos todos encetamos a dois se percam, a meio do caminho talvez; onde há um porquê nisso, que nos faça querer fazer isso, se
E se o faço, E tu dizes ainda,
- E se eu o imagino faço, não poderá ser feito só porque é pensado, eu criei-o, quero fugir por uma porta sem beijar a loucura mas escarnecendo dela, não.
Adolescente.
- Não, já não. Não posso teorizar em como tudo assim seria sublime
,Pegas na navalha
Novamente eu dou a minha última baforada e levanto-te a saia, digo, mas não, talvez tu digas primeiro
- O que vês, se não já concordas
Chateia-me nunca teres escrito a minha carta
Digo
- Chateia-me não teres escrito a minha carta.
Uma mão toca no pulso enquanto dizes
- Se talvez eu soubesse que virias, meu gume inflexível, mistério insondável como eu, e agora.
Digo-lhe eu
;E agora é a outra mão que depois do pulso pulsou na lâmina só com um dedo, abro-te só um pouco devagar as pernas
- Não é o acto, não é o depois, não, pois não.
Desce
Não é o acto, não é o depois nem o antes como memória de uma perfeição por nós destruída como um marco na vida, a relação algo misteriosa acabada, a chuva que explode na janela a luz azul que quer assassinar todo o dia se tu em teu corpo eu em ti, e depois um levantar enquanto eu assinava as tuas cartas e deixava a navalha em ti se não é loucura se
Não é loucura então para quê sequer um trapo para abafar os gritos das dores que serão êxtases de lancinamentos e gritos sem lágrimas
,Se eu, se
Se eu pegar na tua mão, roubar-te talvez a negação pessoal a um este mundo, num banho de sangue, talvez, te abrace depois só para amparar o teu corpo, só para ajudar amparar o meu, lembrar-me dos cheiros
Sinto a chuva a explodir na janela




- Não, isto não é sequer um encontro de dois amigos
Tu e eu
Rasgo-te a saia com a faca mal afiada
,
Sim
; e entãoesquecemos os dois a mulher que eras, em um baptismo pagão de sangue.















J.

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