terça-feira, março 07, 2006

O paciente.

Chamaram pelo meu nome, como se eu fosse capaz de resolver as coisas. Falhado – disseram. E aproximei-me.

[- Sr. Correia, pode entrar.]

Levava na mão um comprimido colorido e no bolso das calças um pequeno papel dobrado que dizia apenas: Vai tentando. Entrei na sala seguinte, deitei-me na poltrona e disse-lhe:

- Está a ver este relógio? Deu-mo ela antes de partir. Faz sol, não faz?, Ontem à noite fiquei à janela à espera que a lua se desintegrasse; tenho feito bastante isso, sabe, ainda assim não consigo deixar de pensar que está para breve. Mas dizia eu, este relógio faz tic tac sem parar como se me quisesse dizer que ela voltará. Provavelmente, não, mas um homem tem de se agarrar a estas pequenas coisas para ter forças para acreditar, não é?, caso contraio uma pessoa desiste. Ah, mas eu tenho esperanças – a propósito, antes que me esqueça, a medicação está a acabar -; o meu avô, por exemplo (que Deus o tenha), passava as manhãs da sua reforma fechado no sótão, feito carpinteiro, a tentar construir carrinhos de madeira e coisas assim. Acabava sempre por desistir, mas a madeira ainda dava para pôr na lareira e aquecer a casa. Tinha uns olhos azuis bem grandes, o pobre do velho. Era eu puto, de alguns sete anos, e ao princípio achava estranho mas lá aprendi que há algo a retirar de bom de todas as experiências. Nesse aspecto ter perdido o emprego fez-me bem. Lá percebi que ganhar muito dinheiro não faz bem ao espírito de uma pessoa. Perdi muita coisa, é verdade, mas agora já me sinto assim a modos que a recuperar forças, mas bem se sabe que nestas coisas da vida cedo ou tarde volta tudo sempre ao mesmo por mais voltas que um tipo dê. Esta semana, aqui há coisa de três, quatro dias, estava eu no trânsito com a estrada toda atafulhada de carros e de cá para mim pus-me a pensar: é verdade, odeio muitas coisas, mas ainda assim tenho um canário que me faz companhia e comida para pôr na mesa. De resto, as coisas lá vão melhorando. A tipa loira do 3º frente foi-se embora, portanto já não tenho de ouvir as suas noitadas orgásmicas de sexo danado. Aquilo é que era acção, hem. Mudou-se agora para lá uma família assim mais escurinha. Ao jantar, por causa daquela coisa toda das mudanças que dá sempre uma trabalheira, coitados, fui lá perguntar-lhes se queriam jantar em minha casa, assim para lhes mostrar que não sou um tipo preconceituoso nem nada. E eles até estavam a ser muito simpáticos mas quando lhes disse que ia fazer bifes de vaca (estavam bastante bons, até) fizeram assim um ar acabrunhado, disseram que não comiam carne de vaca e coiso e tal e educadamente lá me fecharam a porta na cara. Devem ser uns desses vegetarianos que para aí andam, não sei bem. Mas pronto, que se há-de fazer. Cada um sabe de si, não é assim? Ups, ‘tá na hora. Bem, sô doutor, até para a semana a mesma hora.

- Lembre-se de pensar positivo.

Saí do consultório, fiz olhinhos à recepcionista antes de sair (talvez para a semana arranje coragem para a convidar a jantar fora, um cinema, quem sabe…), desci as escadas do prédio. Ao chegar à rua percebi que chovia e ainda por cima não tinha trazido chapéu.



P.

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