quarta-feira, abril 05, 2006

Re-memória

Quando eu era miúdo, vamos lá localizar-nos, deveria ter uns quatro, cinco, ou mesmo seis anos, decorriam portanto os primeiros anos, bem pequenos, da década de 90, mas dizia eu, Quando eu era miúdo, costumava ir com a minha avó a casa dela, em Lisboa, naqueles dias de férias escolares.
Saíamos de manhã bem cedinho e lá íamos, eu e ela, apanhar o autocarro (era a carreira número 179 – no tempo em que ainda eram de uma cor alaranjada, gasta…hoje em dia são azuis). Pousávamos, enfim, os pés na última paragem, na estação rodoviária de Queluz-Belas – descer o último degrau do autocarro implicava um salto já de uma relativa dificuldade. Não sei ao certo se já havia placares electrónicos a indicar o comboio seguinte mas é provável que não. A passagem de nível de uma plataforma para outra, por exemplo, não era feita por baixo da terra como é hoje em dia. Em vez disso havia uma cancela, muito grande, que não deixava os carros passar com facilidade. Havia também uma sirene que avisava as pessoas de que o pouca-terra vinha aí. E como atravessávamos a passagem de nível quando aquele bicho grande estava parado com o nariz apontado a nós, era bem mais interessante porque havia uma certa noção de aventura: aquilo era “perigoso”, diziam as pessoas na altura. E eu achava uma certa graça à coisa.
Mas onde íamos? Pois, eu e a minha avó lá nos púnhamos no fim da fila, no meio daquela confusão de pessoas a irem para o emprego e assim, para comprarmos os bilhetes (meio bilhete para mim, por favor).
Entrávamos no comboio, que apitava bem alto, e lá íamos. Durante a viagem passava o tempo a olhar pela janela ou a folhear um livro daqueles de miúdos, de capa dura, e exibia-o discretamente, orgulhoso por sentir que já parecia um daqueles adultos que lê no comboio.
A meio da jornada, geralmente, já estava um pouco aborrecido – mas coisa normal nas aventuras pois há sempre um momento mais complicado para os intrépidos aventureiros.
A penúltima estação, de Campolide, estava separada da do Rossio por um túnel imenso, escuro, que entretanto fechou para obras. Na altura em que o comboio desaparecia túnel adentro e deixava de poder espreitar o céu pela janela, já sabia que aquela parte do percurso poderia demorar séculos. Era a altura em que tinha maior urgência em arranjar algo para fazer. Olhava pela janela, na eventualidade de passar outro comboio no sentido inverso, ou então tentava contar as luzes dentro do túnel o que se revelava uma tarefa complicada tendo em conta a velocidade a que íamos, e tudo isto mantendo a vaga esperança de que, só por esta vez, o túnel poderia acabar mais cedo que o habitual. Mas lá se demorava.
Embora estivesse escuro ali dentro eu não tinha medo disso. Confesso, porém, que tinha, isso sim, uma relação bem ambígua com aquele espaço. Naquele tempo a paciência era tudo menos uma virtude.

Rossio.

Não sei bem por quê mas tenho ideia de que fazia sempre sol quando ia a Lisboa. A saída da estação do Rossio parecia ser dominada por uma luz imensa. A partir daí até a casa da minha avó era, talvez, cinco minutos. Atravessava-se a rua, passando junto às arcadas do Teatro D.Maria II, onde a qualquer hora do dia se aglomeravam grupos e grupos de homens, como muçulmanos, africanos, e tantos mais. Subia-se a rua, sensivelmente estreita, e estávamos na Calçada do Garcia. Pisava-se em todos os momentos a tão típica calçada de Lisboa; por ali, perante o olhar vigilante daqueles prédios de fachada antiga, poucos carros passavam. A partir dali o percurso era quase em zigue-zague até se chegar onde se queria. Como a subida era algo íngreme e labiríntica, o que eu fazia era ir um pouco mais à frente. Nessas alturas não queria ir de mão dada; era bem capaz de ir sozinho! O meu plano era sempre correr um pouco por ali acima e depois olhar para trás, triunfante, e esperar pela minha avó que lá vinha um pouco mais abaixo – obviamente que eu tinha de ir à frente dela porque como eu já sabia para onde íamos ela assim só precisava de seguir as minhas fiáveis indicações.
Toda aquela correr tinha um destino final.

A porta do prédio parecia-me enorme, verde escura se não estou em erro. Olhava para um lado e para o outro do passeio, contanto os números dos prédios, para ter a certeza de que não me enganava na porta. A minha avó tirava as chaves da mala, ouvia-se a fechadura rodar, e, pouco depois, ao entrar, ouvia-se um baque forte, que ecoava escadaria acima. Os degraus das escadas pareciam forrados com um material qualquer e desapareciam da vista num pequeno efeito em espiral.
Habitualmente deixávamos a tralha toda no 1º andar, onde a minha avó morava, e logo de seguida subíamos ao 4ºandar para visitar a sua vizinha favorita. A D. Maria Emília, que deveria ter alguns 50 anos. Como a minha avó não sabe ler nem escrever era muitas vezes esta senhora quem punha a minha avó a par das burocracias que chegavam pelo correio. Aos cinco anos, quando já aprendera a ler, oferecia-me muitas vezes para ler as coisas; ora, acontecia é que a maior parte delas estava repleta de palavras bem complicadas e portanto eu até era capaz de dizê-las em voz alta, mas saber o que algumas significavam é que era um caso sério. Mas voltando à vizinha. Dizia de mim que eu não enganava ninguém: tinha um ar reguila (opinião com a qual muita gente concordava), e, segundo ela, isso de ser reguila era algo comum entre os Pedro’s. Para fundamentar a sua ideia falava sempre do filho, ou do sobrinho, que tinha. Convicta, concluía, Deve ser levado do diabo. A minha avó, novamente, concordava. Claro que eu tinha uma forma bem diferente de ver as coisas. Alem disso, até me considerava um rapaz bem comportado…na medida do possível.
E o tempo lá passava, sem me aborrecer grandemente. Distraía-me facilmente com as coisas mais simples. O tédio, esse, só o descobri de verdade quando compreendi o significado da palavra.

De volta ao 1º andar. Ali, onde os meus avós tinham morado (lembro-me da fotografia deles a preto e branco), onde a minha mãe crescera e fugia à volta da mesa da sala quando não queria comer – era danada para comer, queixava-se a minha avó, o que só me dava uma motivação extra para eu próprio protestar quando não queria comer, afinal de contas a minha mãe também o fazia, por que não havia eu de o fazer também?.
Naquele espaço, naquela casa, pequena mas acolhedora, eu sentia todo esse peso do passar dos anos. Sentava-me, a pintar (ou a colorir, como afirmavam os livros), na mesma velha escrivaninha onde a minha mãe fazia os trabalhos de casa; a minha avó, por seu lado, voltava-me a contar as estórias dos animais de estimação que por ali habitaram, desde uma gata recolhida da rua a um agressivo galo-da-índia. Este último era um divertimento incrível para a minha mãe, que o punha em frente ao espelho e delirava ao vê-lo bicar no seu próprio reflexo – ainda hoje ela se gaba da forma como conseguia convencer os pais a levar para casa os mais mirabolantes animais. E assim a minha avó lá ia vestindo a pele de ancião contador de “fábulas”, um papel que todos nós, inevitavelmente, havemos de assumir um dia.
A hora de almoço era passada, na maior parte das vezes, num restaurante ali próximo, na companhia de algumas amigas da minha avó. Para mim era sempre um bitoque – e aqui confesso o meu conservadorismo de então pois a minha escolha não variava.
Mas lá pedia, timidamente, pois era ainda uma coisa nova para mim um desconhecido levar-me à mesa aquilo que eu quisesse. Comia o ovo estrelado, parte da salada, parte do bife e as batatas fritas quase todas e ficava estafado. Ainda demorei uns poucos anos até ter conseguido comer o meu primeiro bitoque inteiro, e sozinho… Mas naquele tempo ainda não.
O almoço lá decorria com a actualização das novidades, os grandes acontecimentos que por ali tinham havido. Quando não havia temas novos, o mais certo era recordarem-se os antigos, e era isso que aquelas senhoras ali à minha volta na mesa tão acaloradamente faziam. Entre as amigas da minha avó recordo-me da Maria Júlia, da qual ainda me lembro porque ainda hoje a conheço, mas que naquela altura a via poucas vezes. Havia ainda a Zira, mais conhecida por ser “a mulher do polícia”, que já se habituara a ser sovada pelo marido, e a D. Rosa, mãe da Zira, que anos depois se viria a suicidar, ao atirar-se para o mar, na Boca do Inferno.
Naquelas tardes de sol a minha vontade seria, muito naturalmente, estar a jogar à bola noutro lado qualquer. No entanto, não era propriamente um esforço passar ali o meu tempo. Como era tudo diferente até o fazia com um certo agrado, além disso havia geralmente recompensa, do estilo comestível, o que era bastante porreiro, independentemente do que quer que isso possa dizer sobre a minha pessoa. Aqueles dias eram dias para…conhecer.
Bem, a vida não poderia parar ali, naquela rua mais central, que eventualmente terminava junto ao hospital. Assim, o que eu e a minha avó fazíamos era descer uma escadaria ali nas redondezas, imensa, que acabava bem perto do Terreiro do Paço. A partir daí voltávamos à zona do Rossio. Dias havia em que ficava a dormir lá em casa. Uma cama – que devia ter algum condimento mágico pois era aberta a partir do móvel da sala para, de manhã, com um gesto simples, desaparecer novamente no móvel – servia de poiso. Acontece que a maior parte das vezes voltava mesmo para minha casa nesse dia, mas já lá vamos. Pelo meio da tarde, passávamos bem no coração da cidade, com o castelo de S. Jorge, ao longe, que parecia conseguir sombrear toda a cidade a partir da colina. Atravessávamos o Martim Moniz, passando por uma ourivesaria onde a minha irmã furara as orelhas para usar os primeiros brincos e onde a minha avó costumava trocar a pilha do relógio. Mais à frente a minha avó voltava a contar um pouco de como eram os armazéns do Chiado antes do incêndio e eu lá me punha a imaginar que, se fosse como nos meus sonhos, eu teria poderes fantásticos e apagava aquilo tudo de uma forma engenhosa. Tudo isto acontecia ao mesmo tempo que as obras.
A dada altura lá apanhávamos o transporte, que poderia ser uma autocarro, mas nos dias de sorte era um daqueles eléctricos dos antigos e eu até podia carregar no botão para parar. Íamos até à zona de Santos ter com a minha mãe ao emprego dela, onde eu poderia debater com o colega dela (o Sr. Carlos) acerca dos jogos de futebol. Ficava-se por ali até à hora de saída, um pouco depois das 17h, até que descíamos os três (a minha avó, a minha mãe e eu, que ia mais à frente para ser o primeiro a descobrir o carro) para ir ter com o meu pai, que nos esperava.

De regresso a casa, o sol de fim de tarde tinha o terrível hábito de me deixar ensonado. Mas não adormecia, não ali, não tão cedo. O dia ainda não acabara e certamente que ainda havia tempo para fazer qualquer coisa antes de ir dormir.





P.

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