sábado, maio 27, 2006

Apontamento. 2.

Foi sob a forma de um diálogo que te apresentaste como nova, assim,
- Para ti
Como se eu fosse uma parte diferente de ti – sorrindo por dentro, imaginando algumas letras, esparsas, não poderás, pergunto-te agora que com o sangue invocaste outro nome por entre o sangue que de algumas formas correu, responder-me de outra maneira, falar-me descendo pelas ruas da memória; eu pensei, Não tu disseste Não,
- Não, porque se agora sou uma pessoa nova preciso de conhecer-te de novo, esquecer-me
Esqueceres-te de tudo? Eu queria este ponto de interrogação, interroguei-me eu, enquanto ainda chovia, como se o cenário tivesse ficado, fora do quarto, suspenso durante meses; - no chão, apenas uns lençóis malhados de sangue, uma Navalha perdida quase entre uma cama que sempre fora para nós, na verdade, mais um campo de batalha, e o teu corpo, recto contra a horizontalidade da janela, vertical.
- De novo.
- Se, talvez, fosse possível: o tempo,
- Eu sei. Mas somos tão novos…
Ou: assim o julgamos, pensei eu, disseste tu; tens razão. Ou assim o julgamos. E porque não, perguntei-me, inspirando o salgado do quarto, vendo os reflexos da chuva nas cortinas transparentes; Não sei, antes de poder descobrir quem tu és, tenho de descobrir quem eu sou tenho de te chamar pelo
- Nome; qual é o teu
A tua saia, azul escura de tão imaculada. A tua blusa branca, por trás da tua face entre a curva de uma madeixa que caía ainda, eu perguntei-te com as minhas mãos e os meus olhos se ainda existiria alguma forma simbólica de voltar atrás; mas tu não viste, e obviamente que eu sabia, que não se poderia voltar atrás depois do que tínhamos feito.
Ou; das loucuras
- Que cometemos nós sem perguntar nada a ninguém, nem sequer a nós
Sim; também isso. Era estranho, mas ao mesmo tempo previsível, o teu silêncio. Que caía como a chuva lá fora. Deixava-me frio. E se suspirei mais alto foi porque me encostei à outra janela, esperando que a nova Tu se virasse para mim, e ainda assim, depois de tudo, ainda se relembrasse, pelo menos, de todas as coisas boas que tinham existido nela, e entre ela e eu
- Estou aqui
Disse a tua voz imprecisa e o meu cigarro ao canto da boca ainda por acender dizia-me, foi também para ela que se ouviu, não houve nenhum estremecimento com o roçar da pedra e a faísca que se desprendeu dos seus cabelos com o fumo de todo aquele mistério que tínhamos, primeiro criado, depois presenciado, e que depois nenhum de nós conseguia compreender
- O que é que te levou a isto, diz-me, o que é que
- Não foi medo; não foi o estremecer do coração depois de algo verdadeiramente belo, foi
Não respondas mais,
- Não Res
- Um medo terrível de ficar lúcida para sempre, retendo para sempre as memórias de tudo o que senti e vivi, como se, como se
A vida corresse para trás, não é…? Como se a vida corresse para trás e todas as caras que viste não te tenham conseguido definir sequer os olhos, e precisasses de criar alguém a quem pudesses chamar algo, já que não conseguias sequer definir, ou existir assim,
- como se a vida estivesse ao contrário…
; porque: eu sempre suspeitei. Nada eu nem as minhas estranhas forma de amor conseguiam dizer o teu nome num abraço, num orgasmo definitivo, num silêncio entre dois beijos. E tu sempre o soubeste, que entre a nossa fronteira estava apenas a uma rua, cheia de pessoas, e carros e lojas de dilemas existenciais e questões salpicadas de cores quando deviam estar palavras, de distância.
- Diz-me o teu nome agora
E eu, com os meus passos caminhando para ti, com os meus olhos que olharam para a tua nova face e que não te reconheceram mais, nunca mais, com o meu braço que te rodeou a cintura, devagar, que não te reconheceu mais, e com os meus lábios que disseram uma palavra inventada no momento, mas era a palavra que todos me chamavam desde que eu existia

Disse-to.







(segunda parte do Texto postado n’A Navalha, a 09 de Abril de 2005)
























J.

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