She's Leaving The Bank
- Eu conhecia essas pessoas, essas duas pessoas. Lembrava-me de as encontrar, agarradas ou a discutir, por entre o entulho da lixeira à saída de Lisboa.
- Há quanto tempo
- Dois, três anos. Ele era fotógrafo, e ela doente.
- Doente?
- Presa ao sonho.
- Esquizofrénica
- Sim. Perguntava sempre ao namorado: como se cantasse
- Cantava o quê?
- Pela lixeira, gritava o que é o perdão/é apenas um sonho/o que é o perdão/é tudo.
- Não me é familiar…
- Ele não ia à lixeira de propósito, nem lhe tirava fotografias de propósito. Ele ia atrás dela, dia
- Após dia…?
- Estou cansado. O que lhe dizia, não sei. Mas era uma visão diferente de tudo, enquanto os via do café, com as janelas abertas
- Vias a lixeira
- Ninguém vai a esse café. E comecei a pensar, ele ia atrás dela, sim, para ir atrás da mulher de quem gostava porque ela era louca, e ainda se matava, mas a razão porque lhe tirava as fotografias
- Fotografias
- Era sempre pós-catarse, o acto. Deixa-me dizer-te, só quando parava de chorar, ou finalmente se deitava, derrotado, no tapete de lixo, que as tirava. Claro que vi algumas, mas penso que
- Por causa dela, da alma dela
- Nada tão romântico – ou, talvez ainda mais. Penso que lhe tirava fotografias para preservar a face dela, em situações normais.
- Ela
- Era uma foto, percebes, uma foto. Preto e branco, por vezes a cores, nunca a sépia. Espantosamente, nas fotos, a face dela aparecia sempre normal, como se de uma pessoa lúcida se tratasse. Com o lixo por trás, mas ainda assim
- Nada onírico
- Certo. Tão perto quanto possível, tão longe quanto possível. Ela gritava, berrava, e esperneava, e gritava, E Depois do Riso, o que há, E Depois do Riso, o que há, e ele ou a agarrava para não a deixar cair, ou tentava beijá-la, e ela, de vestido azul, ou branco, sempre imundos pelo fim do dia, arranhava-o e atirava-o para o chão
-
- … Era assim, enquanto o rádio no café, atrás de mim, dizia verdades, roufenhas, que eu não ouvia nunca. O meu hábito foi o hábito deles.
- Perderam-se
- Depois da exposição que ele fez. O dono do café disse-me que ele tinha uma nova exposição. Também me quis dizer o nome dele, mas eu não quis.
- O nome
- A exposição., Chamava-se O Amor. Não achas que podia ser de outra maneira?
- Só ela
- Na lixeira, no meio do lixo. Fotos lindíssimas, muitas sorridentes. Os cabelos dela por vezes a esconderem-lhe a cara, outras agachada, olhando para a objectiva com ar de súplica. Mas todas, todas lúcidas.
- Conhecias essas pessoas, essas duas pessoas
- Conhecia, sei que as conhecia. No fim da exposição, saí, para a caverna de vidro da noite, lá fora, à espera de outras invocações.
- E eles
- No dia seguinte, a casa onde estava a exposição ardeu. Veio nas notícias. O que eu acho
- Quem ardeu quem
- Não importa. O que importa é que eu sei que um deles foi, pelo fogo, ter com eles. Até nunca mais serem vistos por olhos humanos… e desaparecerem.
J.
<< Home