domingo, maio 14, 2006

She's Leaving The Bank

- Eu conhecia essas pessoas, essas duas pessoas. Lembrava-me de as encontrar, agarradas ou a discutir, por entre o entulho da lixeira à saída de Lisboa.

- Há quanto tempo

- Dois, três anos. Ele era fotógrafo, e ela doente.

- Doente?

- Presa ao sonho.

- Esquizofrénica

- Sim. Perguntava sempre ao namorado: como se cantasse

- Cantava o quê?

- Pela lixeira, gritava o que é o perdão/é apenas um sonho/o que é o perdão/é tudo.

- Não me é familiar…

- Ele não ia à lixeira de propósito, nem lhe tirava fotografias de propósito. Ele ia atrás dela, dia

- Após dia…?

- Estou cansado. O que lhe dizia, não sei. Mas era uma visão diferente de tudo, enquanto os via do café, com as janelas abertas

- Vias a lixeira

- Ninguém vai a esse café. E comecei a pensar, ele ia atrás dela, sim, para ir atrás da mulher de quem gostava porque ela era louca, e ainda se matava, mas a razão porque lhe tirava as fotografias

- Fotografias

- Era sempre pós-catarse, o acto. Deixa-me dizer-te, só quando parava de chorar, ou finalmente se deitava, derrotado, no tapete de lixo, que as tirava. Claro que vi algumas, mas penso que

- Por causa dela, da alma dela

- Nada tão romântico – ou, talvez ainda mais. Penso que lhe tirava fotografias para preservar a face dela, em situações normais.

- Ela

- Era uma foto, percebes, uma foto. Preto e branco, por vezes a cores, nunca a sépia. Espantosamente, nas fotos, a face dela aparecia sempre normal, como se de uma pessoa lúcida se tratasse. Com o lixo por trás, mas ainda assim

- Nada onírico

- Certo. Tão perto quanto possível, tão longe quanto possível. Ela gritava, berrava, e esperneava, e gritava, E Depois do Riso, o que há, E Depois do Riso, o que há, e ele ou a agarrava para não a deixar cair, ou tentava beijá-la, e ela, de vestido azul, ou branco, sempre imundos pelo fim do dia, arranhava-o e atirava-o para o chão

-

- … Era assim, enquanto o rádio no café, atrás de mim, dizia verdades, roufenhas, que eu não ouvia nunca. O meu hábito foi o hábito deles.

- Perderam-se

- Depois da exposição que ele fez. O dono do café disse-me que ele tinha uma nova exposição. Também me quis dizer o nome dele, mas eu não quis.

- O nome

- A exposição., Chamava-se O Amor. Não achas que podia ser de outra maneira?

- Só ela

- Na lixeira, no meio do lixo. Fotos lindíssimas, muitas sorridentes. Os cabelos dela por vezes a esconderem-lhe a cara, outras agachada, olhando para a objectiva com ar de súplica. Mas todas, todas lúcidas.

- Conhecias essas pessoas, essas duas pessoas

- Conhecia, sei que as conhecia. No fim da exposição, saí, para a caverna de vidro da noite, lá fora, à espera de outras invocações.

- E eles

- No dia seguinte, a casa onde estava a exposição ardeu. Veio nas notícias. O que eu acho

- Quem ardeu quem

- Não importa. O que importa é que eu sei que um deles foi, pelo fogo, ter com eles. Até nunca mais serem vistos por olhos humanos… e desaparecerem.





























J.

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