sexta-feira, maio 12, 2006

Peripateticamente.

Se o conhecessem de algum sonho diriam que não passa de um eremita. Alguém que se cansou. Das pessoas e das suas rotinas. Das conversas indiferentes. Dos jornais que se repetem. Das viagens de regresso a casa, após mais um dia de trabalho. Enfim, da tirania dos relógios sobre o tempo.
Mas sente apenas pertencer a um mundo que não fala a mesma língua.
Poder-se-ia dizer que se trata de uma escolha – mas quem aprende a amar a solidão, cedo ou tarde percebe que tomou apenas um rumo.
E assim se definiu. Os seus cabelos longos, grisalhos, contrastam com o seu aspecto formal. Exibe-se de fato e gravata, de barba escanhoada, e sempre com um livro debaixo do braço. A pose séria, de alguém que se preocupa com o seu aspecto, é sempre acompanhada por um sorriso sereno. Sabe que é um conceito ambulante, um quase provocatório cliché. Mas por muito que queira, velhos hábitos são sempre difíceis de perder. Dos seus anos de professor recorda apenas uma certa mágoa. Toda uma fúria de sensibilidade de alguém que queria ensinar, mas que confessa que houve anos em que sentia não ter alunos. Eles lá estavam, é certo, corpos presentes a gesticular discretamente. Preocupados com tudo e com nada. Olhando pela janela, suspirando, esgotados de tanto descanso. Assim, as paredes brancas sempre lhe pareceram os alunos ideais. Ouviam-no. E para elas falava, numa cumplicidade tão tipicamente atípica.
Ajeita a sua gravata cinzenta – a mesma de sempre –, e sai da caverna a que decidiu chamar casa. Lá fora o sol tomou conta do céu. Sente uma leve comichão no joelho e a sua experiência diz-lhe claramente que amanhã o dia será bem diferente, e que as nuvens serão da mesma cor da sua gravata. Será, porventura, apenas mais um dos ensinamentos que a vida lhe transmitiu enquanto passava por ele. Mas agora não há tempo a perder. Numa árvore ali perto já dois pardais o esperam, prontos para a lição do dia. Não faz ideia da razão, mas a verdade é que desde que chegou àquele lugar, há poucos meses, que todos os dias lá estão, sempre os mesmos, sempre a esvoaçar à sua volta enquanto lhes fala. Baptizou o maior de Ari, e o mais novo e pequeno de Plat, para melhor os poder chamar à razão quando se distraiam. Caminha, confiante, dissertando sobre o que lhe ocorre no momento. Discursa longamente, ao ritmo das suas passadas. Já não se sente diminuído por ter prazos a cumprir.
Disseram-lhe um dia que devia parar. Que alguém assim tem de ganhar juízo – não pode andar por aí a deambular. Responsabilidades, pois claro. Afinal de contas, professor que é, não pode abandonar o seu reino.
Mas não o fez.
Nunca isso.
Ele pára. Olhando em redor percebe a certeza que o impulsiona. O Tempo é mais frenético quando não lhe dão a atenção devida. Não o voltará a apanhar desprevenido. Recomeça a andar, consciente de que a lição do dia está ainda por ser dada…







Dicionário da Língua portuguesa 2004:

Peripateticamente – adv. 1 à maneira dos peripatéticos; 2 em passeio; passeando (De peripatético + mente)
Peripatético – adj. 1 relativo ou pertencente a Aristóteles ou à sua filosofa; 2 que ensina passeando; 3 [fig.] extravagante; exagerado; adepto ou seguidor do aristotelismo (do grego peripatetikós, «que gosta de passear», que ensina, passeando)







P.

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