terça-feira, junho 06, 2006

Das viagens.

Recentemente, tenho descoberto cds que tinha há uns anos em minha posse mas a que nunca tinha prestado a mínima atenção antes. Nick Drake, Paris, Texas, por exemplo, só para citar alguns. E redescobri outros, como o Nashville, de Josh Rouse (sempre tinha sido mais um ouvinte do 1972). A descoberta (ou redescoberta) deste tipo de sons que me fazem dar graças por estar vivo, já que, cada um à sua maneira, me transportam para diferentes estados de espírito a que nunca tinha chegado – porque, justamente, nunca tinha ouvido nada que se parecesse – é devido ao facto de andar de carro.
Sou um apologista da teoria que cada música tem o seu momento. É impossível ouvir pop em certas alturas ou situações do dia, assim como me custa bastante ouvir Country em locais ou alturas que não sejam tremendamente específicos – não que não goste de country, gosto, simplesmente é um género mais específico de música para mim – o que me leva a chegar à conclusão que, provavelmente, gostarei de praticamente todos os estilos musicais, se encontrar momentos ou lugares propícios que me levem a vê-los com outros olhos. Foi isso que me levou a descobrir ou redescobrir estes 3 cds, só para dar o exemplo. As circunstâncias que levaram a isso? Comecei a andar de carro.
Adoro conduzir. Pensei que iria ter medo quando começasse a andar sozinho, sem ter um instrutor ou um progenitor ao meu lado, mas enganei-me redondamente – isto porque o meu pai fez um bom trabalho em encher-me de pânico e nervos cada vez que andava com ele, o que levou a que a primeira viagem de carro que fiz sozinho fosse um alívio, levando a que todas as outras fossem uma coisa natural. Gosto de andar de carro; gosto de acelerar enquanto mudo três mudanças, gosto de sentir o vento a bater-me no lado esquerdo da cara (pois, não tenho ar condicionado…) quando percorro a cidade, mas, acima de tudo, gosto do carro por ele ser, percebi-o há semanas, o único sítio neste mundo em que uma pessoa pode estar completamente sozinha – quando precise. Quando estamos a conduzir, nada nem ninguém nos pode afectar. É melhor do que estar fechado num quarto à chave já que existe sempre alguém que pode arrombar a porta, ou escondido num beco qualquer que leve alguém a encontrar-nos. É melhor do que se estar sozinho em casa pois o telefone sempre toca, ou um vizinho sempre pode eventualmente bater à porta. No carro, nada disso acontece. O carro é o instrumento de fuga por excelência. Quando arrancamos para o desconhecido de caminhos que nunca percorremos, se nunca pararmos (se nunca batermos, é claro) ninguém nos pode apanhar, dizer o que quer que seja, abrir a porta e entrar. O carro é uma barca, um vessel, se quiserem, que nos torna completamente impermeáveis ao resto do mundo – nada do que se passa lá fora nos pode, de maneira alguma, afectar, enquanto não pararmos. Isso leva a que o carro seja o instrumento de fuga por excelência, não apenas da fuga física, mas da fuga das pessoas que fogem de si mesmas, ou dos seus problemas, ou da sua consciência. Como tal, o carro, como lugar introspectivo que é, cria um ambiente muito próprio, que leva, também, a que se ouçam (quando tal se suporta, muitas vezes só quero ouvir o silêncio do motor e da estrada à minha volta) a que se ouça música que, normalmente, não ouviríamos em mais nenhum lugar. Isso leva-me aos cds de que falei. Conduzo muito ao fim da tarde, já no crepúsculo, e à noite, por volta das dez horas – raramente conduzo a qualquer outra hora do dia, embora isso, mais cedo ou mais tarde, esteja fadado a mudar. Como tal, o estado de espírito em que uma pessoa entra muda. É o crepúsculo, dusk, sendo a palavra em inglês muito mais bela e específica, penso, e é nessas alturas em que uma pessoa, normalmente, ou pena no dia, ou na vida, ou não quer justamente pensar em nada. E foi assim um dia em que eu descobri o Pink Moon e o Paris, Texas. Do nada, levei, em dias diferentes, esses cds para o carro, porque sentia que iria ser ali que finalmente os iria descobrir. Tinha ouvido o Pink Moon umas duas ou três vezes, do Nick Drake, e não tinha percebido o culto, o hype. Do Made to Love Magic também só tinha gostado de duas ou três músicas, as outras não me ficaram na cabeça. Copiaram-me o Pink Moon para ver se gostava, mas passou-me ao lado. Guardei-o, e ouvi-o raramente, nunca me dizendo nada.
O caso do Paris, Texas, do Ry Cooder, ainda foi mais radical. Tenho esse cd desde que nasci, os meus pais compraram-no depois de terem visto o filme com o mesmo nome (o que me surpreende, já que os meus pais nunca ouvem música, nunca mesmo). Ouvi-o pela primeira vez aos oito, pu-lo de lado. E isso acontece1u de novo aos treze, aos catorze, aos dezasseis, aos dezassete, e aos dezoito. Nunca o tinha conseguido perceber, nem mesmo depois de um certo artista me ter dito que era genial. Ambos os cds, só os percebi quando os pus no leitor de cds do meu carro, quando voltava de Benfica, às dez da noite. A música despida de Nick Drake é fantástica, e é o álbum mais bleak que já ouvi até hoje (mais uma vez, peço desculpa por não ter encontrado uma expressão em português que traduza a ideia específica que quero passar do álbum). A voz é levemente rouca, a guitarra dedilhada por um homem à beira do suicídio – que, de facto, aconteceu meses depois. Parecia que ele sabia que não voltaria a compor mais nenhuma música, a tocar mais nenhuma música. Essa sensação transparece horrivelmente. São as últimas músicas da vida dele, e ele sabe-o. Dura vinte e oito minutos, o álbum, mas é uma autêntica viagem. Quando acaba, desejamos apenas o silêncio – porque depois dessas músicas, só o silêncio se pode ouvir sem magoar o nosso espírito, vítima de outras melodias impróprias.
E paris, Texas, é o álbum por excelência do condutor solitário. É só uma guitarra tocada a partir do deserto americano – sente-se isso à distância. Ninguém canta, no álbum, só há um curto diálogo na penúltima música entre um homem e uma mulher (que me inspirou a fazer o mui mau texto she’s leaving the bank. É mau. Eu sei do que estou a falar). Tenho a certeza que o filme se passa no deserto, não preciso de o ver para o saber. A música diz-me isso. O deserto é só, há uma fita de estrada que se estende a perder de vista, e, estou certo, quem a percorre enceta uma viagem shamânica ao interior de si próprio. É só uma guitarra, que dá passo à viagem, ainda curta, que qualquer um faça, de tarde ou de noite.
Em conclusão, não só há músicas específicas para cada momento único das nossas vidas, como ambos são irrepetíveis. Ninguém me pode tirar o que sinto quando retorno a casa, sabendo que vou acabar uma travessia, sabendo que estou fora do mundo durante mais cinco, dez minutos, e que nada nem ninguém me pode afectar. E ninguém me pode também tirar a alegria que é ouvir josh rouse, o Nashville ou o Subtítulo, de manhã solarenga, no verão que já está aqui à porta, com amigos para a praia ou qualquer coisa assim parecida. Os momentos nem sempre somos nós que o fazemos – e eles, tal como as músicas, nem sempre são descobertos por nós – ao invés disso, muitas vezes são eles que nos descobrem.























J.



(P.S. – Sim, já tenho carro. Sem rádio, mas já tenho carro).

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