quarta-feira, setembro 27, 2006

Sobre o J.

O J. é um tipo porreiro.
Lembro-me de quando o conheci, éramos novos, assim para o novinho e ele apanhou-me a descer as escadas lá da escola.
“Tu é que és o…” – trocou-me logo o apelido, o fulano, logo o meu apelido que por aquela altura mais parecia uma marca registada. Eh eh, parvo, pensei; mas não fiz caso. O J. lá vagueava ainda a ambientar-se às coisas e com o tempo lá nos fomos conhecendo. Nessa altura ele era assim mais para o tímido – hoje em dia mais parece não ter vergonha na cara. Mas era compreensível. O primeiro sinal para perceber o que se passava, deu-se depois de uma aula de educação física. Nos balneários, habitual antro de estórias e maledicências, ele teve de se despir, como todos os jovens, e confesso que fiquei algo espantado com os seus três pénis, um deles roxo. Não os tinha baptizado mas antes que a estranheza se propagasse lá explicou que um deles era o dito “normal”. O roxo só o usava uma vez por semana numas míticas quintas-feiras à noite. O terceiro pura e simplesmente nunca lhe havia dado uso.
A coisa lá foi andando por uns dias até que ele finalmente abriu o jogo.
“Sabes, P., o que eu queria mesmo era cuspir fogo!”
- Yah – disse-lhe - eu já tinha percebido pela tua cauda de dragão, mas acho que isso não tem grandes perspectivas de futuro.
Presumo que tenha sido nessa altura que ele decidiu ir para Direito. Ainda assim havia muito tempo para o final do secundário. Éramos os rapazes mais novos, numa turma quase exclusivamente de raparigas e olhámos um para o outro com a nítida sensação, Bem, é melhor que nada.
Adolescentes, vivíamos na consciência de cada dia era um autêntico melting pot de caminhos novos por desvendar e talvez tenha sido por isso que partilhámos o nosso gosto pela escrita.
“Um dia criaremos um blog…chamar-se-á A Navalha” – dissemos em coro, proféticos.
Claro que tudo isto é mentira, só anos depois nos ocorreria tal ideia, mas era muita catita se fosse verdade. No entanto, delineámos um autêntico plano de batalha.
Telepaticamente ou por força de uma magia negra qualquer decidimos aproveitar o nosso desinteresse em encher cadernos com apontamentos de aulas, e optámos por dar vida ao nosso primeiro projecto em conjunto:
As Banalidades.
E eram tantas. Peças humorísticas, frases absurdas, desenhos irreais, tudo o que não fizesse sentido encontrava o seu abrigo nas folhas soltas que diariamente acumulava-mos e que eram guardadas com carinho. Fechou-se um ciclo e, armados em espertos, trouxemos alguma seriedade à coisa. Das banalidades passámos para poemas escritos pelos dois, que, inteligentemente, baptizámos de Poemas Conjuntos. Por esta altura parecíamos uma máquina criativa bem oleada.
E éramos, pode-se dizer, amigos. Eu era a faceta racional da crew de dois bacanos a que demos origem, e o J. dava cabeçadas na parede e gritava coisas como
“Seremos livres!” e “Tenho fome!”
- És um bocado estranho, não achas? – disse-lhe eu certo dia. Não me lembro ao certo do que ele disse, mas isso não alteraria em nada o rumo dos acontecimentos. Eu já tinha a minha resposta bem definida.
Como em todas as narrativas sobre grandes amigos, nós obedecemos ao lugar comum e éramos impossíveis nas aulas. Lembro-me que sempre que se marcava um teste, a sala de aula era invadida por um estardalhaço brutal. Toda a gente praguejava e dava sugestões para datas em altos berros. Para mim e para o J. era a oportunidade ideal. Enquanto o caos se propagava livremente, eu e ele gritávamos histéricos, ininterruptamente, AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH. E calávamo-nos no exacto momento em que se fazia silêncio, orgulhosos por, mais uma vez, ninguém ter reparado. Talvez esta já fosse uma metáfora para o contributo que haveríamos de dar ao mundo.
Houve um dia em que, bem no fundo de uma enorme sala, durante uma aula de História, fui tomado por um transe psicadélico. Sem me aperceber, acabei a desenhar no livre um smiley azul, de sorriso diabólico, que se auto-intitulou de The Demented Blue Man. No dia seguinte, numa outra aula de História, o J. estava a folhear o meu livre e quaso que dava um daqueles gritinhos de menina de 7 anos ao deparar-se com a figura infernal que lhe sorria. A partir daquele momento criámos uma série de novos bonecos, todos smileys, preparados para nos assombrar. E assim foi. Até aos dias de hoje.
Eventualmente o secundário acabou. Chegámos cada um à sua faculdade, preparados para sabe-se lá o quê. Eu continuei a minha cruzada imaginária para salvar a humanidade da sua maldade inerente, e o J. ficou-se por coisas mais mundanas. Cresceu-lhe uma terceira orelha nas costas. Quando ma mostrou só fui capaz de lhe dizer, És uma aberração.
Ele olhou-me nos olhos, naquilo que poderia ser descrito como um momento dramático, e disse:
“’Tás louco, ou quê!? As miúdas adoram cenas assim pr’a o diferente…até vão delirar”.
Sim, o J. é um tipo porreiro.
Sempre me deu bons conselhos de vida. Outras vezes nem tanto. Aqui há uns dias virou-se para mim todo contente, “Epah, nem tens bem ideia, agora o que está mesmo na moda é ser estrábico!”. Não sei como me convenceu mas lá passámos o resto da tarde a revirar os olhos quando falávamos com alguém. O que até nos deu algumas cenas à borla, entre alguns comentários de pena.
Mas no fundo, no fundo, o tipo não tem mesmo solução.
Ele é mesmo assim, o meu amigo J.







P.

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