quarta-feira, outubro 04, 2006

Dias Violentos

É em dias como estes que tudo parece que já foi visto – tenho a certeza.
Tenho a certeza como a calma das frases curtas, enquanto este dia passa, violento mas adormecido, e na rádio só passam notícias sobre o trânsito, as filas nos supermercados estão todas silenciosas, o juiz bate com o martelo anunciando o fim da sessão sem dizer mais uma única palavra, e os pintores, os músicos e os escritores acordam angustiados, só por hoje já não ser ontem. É um dia violento. Tenho a certeza.
- Sempre tiveste muito medo…
“Querida Inês, por aqui está tudo bem. Só vi a tua carta que me mandaste, há cinco anos, agora, porque só agora regressei do estrangeiro. Antes de mais, quero pedir-te desculpas por não te ter podido responder mais cedo, mas, agora que regressei, estou disposto, a arrumar as coisas na minha vida, pouco a pouco. Embora devagar, é certo. Eu ando bem. A casa está quase vazia e despedaçada, foi assaltada uns meses depois de me ter ido embora. Os meus vizinhos puseram uma cartolina a tapar a janela partida para não chover cá dentro, mas mesmo assim há bolor pelas paredes todas. Só levaram uns móveis, os quadros e os electrodomésticos, o resto deixaram, mas partiram muita coisa. Foi muito estranho regressar à casa dos meus pais, sem ter ninguém à minha espera, e vê-la assim. É uma nova ideia, e uma nova vida, a que me vou habituando. Hoje e amanhã vou só sair para comprar umas coisas essenciais, de resto vou ficar por aqui a arrumar tudo. Lamento pelas notícias do bruno, eu – “
- Hoje à noite vou sair. Vens, e tiras essas ideias da cabeça. Tens de te guardar dessa percepção estranha que tens do tempo, como se…como se para ti estivesse a acontecer tudo ao mesmo tempo, é isso – tu crias ideias como se contigo se estivesse a passar tudo ao mesmo tempo
Aqui há uns anos sorriria se me dissessem que me encontraria neste preciso local, à beira de abandonar a pessoa antiga que, com os seus olhos, contemplaria esta paisagem simples, carros a passar os prédios, sempre imóveis, os céus e as árvores a desabarem todos. Alguém está a fazer amor naquele prédio. Ali, naquele prédio de quinze andares, alguém
- Vem, estamos todos com pressa.
“ – Diz também à Júlia que não lamento nada, não faria sentido, sempre que andei de autocarro pelas routes tudo se dissolvia num misto de silêncio, noite, e tempo, que ajuda ao esquecimento. Já não sou a mesma personagem, portanto não faz muito sentido, lamentar-me por aquilo que fiz quando agora já não o sou. Aprendi a matar as saudades que tinha por ela”
(uma voz grita)
- Tu vens por mim, eu estou aqui, tal qual como me deixaste, tão nova quanto me deixaste, tão virginal e onírica como sempre –
Pensando bem, têm sido todos dias violentos, estes, em que as pessoas sorriem só de olharem para o céu (é isso, é que é ser adulto)
, Os miúdos no terceiro ciclo são espancados num bailado bonito com um frio a saber a gripe no ar, é o Outono. Já ninguém escreve cartas. Já ninguém passeia de mãos dadas junto à praia sem pensar em nada de relevante.
“ Gostava de saber se já tiraste o curso de psicologia, por acaso. Ver-te é impossível, mas gostava. Se responderes, e enviares a carta para esta morada, também é provável que só daqui a mais outros cinco anos te responda, porque daqui a duas semanas sou talvez capaz de partir para”
- Ainda não é de noite. Ainda não…
Ela está deitada na cama, observando as sombras dos cortinados a abanarem, lentamente, contra a janela. E os padrões das cortinas a abanarem, impulsionadas pelo vento frio e calmo da janela, aberta de par em par, fazem-lhe criar imagens nos olhos, cansados de
(Lembra-se do futuro; Lembra-te do futuro)
- Olha para mim. Sente-me. Estou a abraçar-te! Olha para mim. Há quanto tempo é que estás com estas ideias, que tudo é negro, ou uma piada ou
O meu coração dói-me no peito. Como se eu fosse um grande íman que atraísse todas as ideias e essências, não consigo perceber o resto. Olho-te nos olhos. Tem piada. O reflexo que me é devolvido não é o meu. Ponho a minha mão entre os teus cabelos
“ Os ventos ensanguentados que costumavam provocar-me febres, passeando-se pelo meu corpo como lobos de sémen pelo meu peito já quase desapareceram. Estou muito melhor por isso, mas ainda temo todas as noites, as noites que sempre vêm, em que terei que entregar-me aos braços imaginários de um medo resinoso, que me influa nas narinas o seu desejo podre de procriar chamas gastas de raiva, traumas e esquecimentos. As imagens líquidas que costumavam intrometer-se entre mim e a tua memória também se tornaram mais esparsas. Como um sono. Enfim, talvez a vida seja um sonho, eu, que não sou filósofo, não sou de certeza o primeiro a cegar a essa conclusão (ouvi dizer que os sofistas”
- Volta, comigo, e quando te peço
Está um dia violento
- Que voltes comigo estou a pedir que o teu corpo volte, que a tua cabeça volte, que o teu amor, mesmo que seja desconhecido
“Como está o Baltasar? Se o cão ainda não tiver morrido, faz-lhe uma festa por mim; e se já fores casada”
- , mesmo que tenhamos, mesmo depois de voltares, de acabar tudo, mas volta, fogo estou a pedir-te que voltes, volta, Volta, Volta D
Vou sentir a falta desta violência toda, destes dias com cores diferentes que só eu vejo, das pessoas com sonhos nas íris e sorrisos no coração. Vou sentir a falta da esperança insuportável do amanhã, e o medo que um dia acordemos e sejamos todos, todos amigos, e profetas, e conhecedores de todos os caminhos que percorremos porque queríamos percorrer o Outro, qualquer que ele seja, que será sempre o chegar ao ponto de partida, e poder sorrir. Vou sentir falta de muita coisa. Vou sentir falta do vento.
“Perdoa-me, por fim, pela pessoa que fui antes daquele dia, em que senti, finalmente, que tudo tinha ruído para mim. Mas eu precisava que tudo ruísse. Precisava que tudo ruísse para poder partir, para poder renascer, voltar, relembrar-te. Ter saudades tuas e escrever-te esta carta.”
- Tudo o que seremos não importa nem tudo o que fomos, volta, perde esse medo, volta para mim, para o Mundo, para tudo, Ouve-me Volta
“Se, ao menos? Penso por vezes. Tivesse acreditado em ti, quando ainda éramos jovens, ou pelo menos nos sentíamos jovens…? Resumindo.
“Gostava de ter tido essa oportunidade.”
É engraçado, enquanto me sinto
Não consigo discernir
(- volta…), sussurra-me
Ao ouvido.
“Dá notícias, procura-me, aqui é tudo. Teu –”
Poderia ter tido tudo. Tudo, tudo, tudo.
(- Para todos nós…)
O meu segredo vai flutuar para sempre sobre este mundo violento, estas memórias violentas. O meu futuro ardente vai consumir-se, como uma estrela em miniatura, afogando-se no mar.

- Está bem.
(-) Vamos Ser Felizes.











J.

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