Wasted state of Mind
Entre Paris, Londres a miúda gira do décimo-segundo que vai ser violada daqui a um quarto de hora e a figura imponente, do meu pai, sentado numa poltrona podre como num trono, a minha casa que o alberga já sem iluminação, vai um mundo de existência que me espera, e separa.
Segui-a para ver se a minha previsão de realizava mesmo, segurando os óculos que me descaíam do cabelo pingado sobre a testa. Havia uma parte de mim que estava terrivelmente assustada. Estou no futuro, neste momento; confronto o meu pai com as boas tardes, o seu olhar vermelho de fúria e as suas mãos do tamanho de cómodas crispam os braços da poltrona, Por onde andaste, quem és (esta pergunta não no tom inquisitório de não saber quem sou, mas no tom de não saber se eu sei o que sou), a memória da tua mãe onde anda? Pai, vou-me embora, vou partir para a América, vi uma miúda a ser violada enquanto passava por baixo da ponte e voltava da escola, já não há nada mais para mim aqui.
A minha irmã cheia de ranho seco pela cara esconde-se com um gemido debaixo da mesa da cozinha. Percebo agora: a casa vai saltar, toda, rugir e saltar num espasmo violento existencial épico. O meu pai ruge e com a força do seu urro principia a levantar-se, e há algo que em mim sua e gosta do que vê – devido a poder sentir que passou por algo importante nesta nossa vida – quando três rufias contentes, tremendamente contentes e felizes, e não é uma felicidade malvada, a apanham, ela grita e eles apresentam-se educadamente enquanto dizem os seus nomes, eu sou o João, Eu sou o Paulo, Eu sou o Luís,
- Paula!!!
Sai-me o primeiro grito sobre-humano desde que nasci, resquícios dos genes sobrenaturais do meu pai, o meu peito explode e os pratos, os talheres e os bibelots com bolor saem como se por acção de um poltergeist dos armários e das gavetas de madeira verde e podre enquanto o telhado treme sob o urro do meu pai: gigantesco. Sim, é a casa que salta e grita, toda.
- Paula!!!
Deixo de ser um menino enquanto escorrego ela relva húmida e relembro-me de toda a minha vida até esse momento, como se acabasse de morrer, enquanto me torno um homem: acabara de sair da escola e de conversar com a Gianda, tinha tido português e tinha retido que Camões foi o verdadeiro poeta épico do mundo, por a sua vida ter sido semelhante aos factos heróicos que narrara; o fantasma da minha mãe com uma túnica cor de rosa a dar-me os bons dias em casa dos meus avós, a primeira vez que saí de casa aos sete anos e deixei a minha irmã e o meu pai em nossa casa sozinhos, tão distantes; o cheiro a canela quando beijei a minha primeira namorada que me enjoou e me fez perceber que ainda era demasiado novo para sentir o que estava a sentir, eu tinha doze anos. E os amigos, as bicicletas e os prédios negros explodindo e cortando contra o vento frio dos dias engolindo partes grandes do céu rosa que se espalha pelas ruas da capital, Paris
E Londres tão longe. Vou-me embora, pai! O que eu quero é ser escritor, não há mais nada que me prenda aqui, nem sequer a este país, vou fugir de ti, da tua presença, da
- Paula!!!
E o grito repetia-se em mim enquanto o meu cérebro me mentia a ponto de já não conseguir saber se era verdade ou mentira que tinha salvo a Paula, ou se tinha antes perdido a Paula, perdido aquilo que me possibilitaria enfrentar tudo daí em frente
- Rapaaaaaaaz!!!!
E o seu grito a arrancar as paredes das fundações, a minha irmã a agarrar-se às pernas da mesa que flutuava no ar, centímetros acima do solo, enquanto se desfazia e apodrecia,
- Paula?
Tudo o que me espera é o desconhecido e a certeza que nada será tão avassalador quanto o meu pai, quanto esta tarde, quanto esta minha entrada na vida adulta, no mundo adulto que já não posso ignorar, como foi ver a casa a desfazer-se no maior assomo de fúria que já vi, a minha irmã de boca aberta e ranho seco pela cara toda, para nunca mais ouvir os seus sons guturais, o fantasma da minha mãe, etéreo e quase indiferente a tudo isso, quanto os meus amigos, os meus três rapazes que violaram a miúda do décimo segundo ano, a
- Paula…
, Nada, não, nunca mais, primeiro Paris, depois Londres, Pai
- Pai, adeus, vou partir para a América, já não há nada para mim aqui
- RaaaaaaaPAAAAAAAAAAAAAAAAAAZ!!!!
…Só me interessa partir, pai.
Adeus.
J.
Amanhã vou a um funeral.
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