quinta-feira, junho 02, 2005

Nuances demoníacas.

(evidências).
São quatro da manhã. O reflexo do meu quarto teima em dizer que se desprende de mim. Um demónio, ele diria; se eu não…
Me encontrasse nele em seu reflexo.
Em seu reflexo demoníaco.
A roupa está espalhada pelo quarto. A cama é um gume de línguas. Abre a persiana, não te esqueças de te observares hedonisticamente pelo vidro da janela - em ti a noite não pode ter eternidade. Não há cigarros, mas há um sorriso preocupante; incrível. Desobliqua-se como se só ele soubesse qualquer segredo que tornasse toda a sua experiência de acordar, menos terrível. Decerto se está a lembrar do que sonhou.
Pede-me para ter calma.
Sonho com ele todas as noites. Eu acredito que
(eu acredito)
algo o diverte com a força das montanhas que criava há minutos para partilhar com outras criaturas também imaginadas. Algo o não faz rir porque ele é Ele, e eu compreendo-o - é isso que me assusta. Ele é a outra metade do gume, o seu corpo
quase nú desliza
pelos lençóis peganhentos de uma noite, que depositou uma bênção de pó e gordura em simbiose perfeita. O calor une-os, Ele sabe-o. Ele
Diz adeus. Eu sei, que ele se sente omnipotente. Não há maneira fácil, de explicar a minha relação, com a minha contraparte demoníaca. Ele consegue tornar todo o meu embaraço em desejo. Ele queria
Eu sei
Devorar-se se pudesse. No espelho. Ele sabe-se perfeito.
Contemos uma história, eu e ele. Quando sempre teve em mim, existia no acordar ainda em noite um travo de sagrado e secreto no ritual silencioso que era, acordar. Mas eu acordava de facto.
Ele ficava a mirar-me, ainda me vendo reflectido no vidro da janela, olhando para a cidade que odeio.
Amando-a perdidamente. Brincava com a minha navalha e pousava-a no mesmo sítio onde a deixara eu, na noite anterior, num irritante e assustador momento antes de pegar nela. Agora estava virado para mim, pulsos cortados mas também uma cicatriz do nariz, passando por um olho - os sonhos, são uma guerra. Dizia-me ele. E eu levantava-me ainda, ao vestir-me - ele ainda me observava de tronco nú, e eu falava por ele para não ouvir o que me tinha para dizer, seduzir-me. Sorrindo apenas.
(evidências, dizia-me ele)
- João, qual é a velocidade a que tens medo.
É uma meia hora intransmissível, a parte que eu mato todos os dias, silenciosa, calmamente psicopata, que sorri sempre, mas apenas para mim, num sorriso oblíquo, antes de me tornar no João. Ele fica para trás, ressuscito-o quando pressinto que tudo dorme, mesmo sabendo que uma cidade nunca dorme; apenas se intervala. Mas o silêncio trá-lo de volta. A ausência de luz.
Os sonhos faziam-no acordar primeiro que eu, escapava ensanguentado pelos pesadelos, e adormecia exausto no meio da cama, por cima de mim. A resfolegar mas contente por ter sobrevivido. Para o meu demónio a fúria despreza-se, o que resta é a paixão. Há algo no seu sorriso. A forma como os seus olhos brilham
- Boa Noite. Diz
Adeus
. não. Não pode ser. Ele tem sempre aquele ar, ele tem sempre aquele ar que não desarma; que diz que vê segredos em tudo desde o início do homem, aquele olhar que vê tudo por um prisma de sensualidade, e ama cada curva corporal sua; e cada farrapo de calor que lhe bate no corpo semi despido, quando vê o mundo
pela janela aberta. Pela persiana que abre numa languidez, de sagacidade imperdoável para alguém como - ele.
Não fuma. Faz rodar a navalha escondida no cabo, pela palma da mão; pensa em todas as mulheres com que eu sonhei nessa noite, e vê-las, reflectidas num gume ainda por sacar. Eu sei tudo isso, enquanto me visto; eu sonho com mulheres tiradas de uma discoteca mista de punk e psicadelismo. As mulheres são guerreiras, os seus cabelos têm cores invulgares e muitas vezes espetados para cima. Empunham chicotes, ele passa a mão pelas costas magoadas como se tivesse participado a noite toda numa caçada - era eu a presa. E sorri baixando a cabeça. Fechando os olhos. As dores fazem tudo sentir mais real para a minha contraparte demoníaca.
Não quero sequer que se me pergunte; porque é que o mato se. O amo. Se ele, é tudo aquilo que eu desejo. É. A projecção perfeita de uma sensualidade irresistível. O meu.
Lado pagão.
Ele ressuscita sempre em mim. Não o detenho. Ele não é meu. É somente eu.
Todas as noites me devora na imensidão do seu próprio segredo
Demoníaco.





Dedicado a mim;
e.
A todos os nuances que vos seguem quando sozinhos
Têm medo de vocês mesmos.






J.


(demon john).

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