sábado, outubro 08, 2005

eu vi
a sereia de plástico esfacelar-se no rubro sal das marés portuguesas
seios tolhidos no sange de um lápis de cor
na boca a fúria das viagens: europas américas arábias
mares estreitos onde é possível morrer
novos países novas profundidades delirantes visões
por entre o coral de teu corpo nómada
vestido de neblina e de rios
breves lâminas sulcam a memória de pequenos espectáculos
e tua mão abre-se para nos oferecer um ovo
ou seria o mundo pintado de branco e amarelo?
eu vi
a sereia do sonho cansado levantar-se luminescente
caminhar incerta pela noite adiante
olhos vibráteis captando a fragrância preciosa dos distantes marinheiros em cio
os dedos por cima doutros sexos lisos como os limos que escorregam para dentro dos sonhos
inocência calcária dos dias
medusas mortas
o corpo enchendo-se com os despojos de um mar
eu vi
a sereia em plástico português
crescer das pérolas insones de uma ostra
e vergar o corpo sobre a folha de papel
fascinada
abria os lábios húmidos para sugar o sexo do marinheiro desenhado
escondia-se depois numa frsta penumbrosa do cais
prolongava a vigília do corpo na observação dos astros
enquanto tu continuaste a desenhar
eu vi
sua transparência de saliva pura atravessar corpos e estrelas
sem que teu corpo sofresse
ou sua transparência diminuísse
até que a noite sequiosa abria caminha às facas adivinhadas
e ao sexo em prazer vigoroso
onde peixes luminosos traçam na água as linhas da palma da mão
eu vi
a sereia de plástico construir um país
e um veleiro para se evadir na direcção doutras ilhas
levando por bagagem os detritos dados-à-costa: garrafas brancas de gin nocturno sapatos inchados panos preservativos usados cacos de louça embalagens carcomidas cartões de caixas ao vento velas da imensa jangada vestígios de comida rápida pentes vidros filmes madeiras fotografias que o tempo recusou morder
e navegou
navegou demoradamente conheceu a sede e a fome
o frio a neve de flutuantes ilhas a alucinação
eu vi
a sereia embriagada abrir garrafas de cerveja com os dentes
e oferecer flores envenenadas aos amantes
dobrada sobre as flores da velhice deixava-as cair
na vertigem fortíssima da aguardente
roía as unhas e a ferrugem dos brinquedos
desenterrava da memória colheres delirantes
restos de rostos carbonizados
areias cobertas de ouro e de peçonha
eu vi
a sereia fender seu próprio coração a golpes de sílex
e tatuar perto do antigo coração um rosto um cereal doente
nas veias rasgadas por monstros marinhos e pelo medo
o imenso medo do fim da adolescência
eu vi
a sereia em plástico português abrir um sulco de solidão
o precipício
e renegar o falso mel da terra debruçada sobre o esquecimento
rectângulo da monotomia donde soçobra o vómito
tudo enlouquece na ponta do lancinante lápis
as lágrimas o grito
eu vi
a sereia soltar das suas mãos a última paisagem viva
a papuola opiácea da morte envolvendo os corpos
antes de mergulhar para sempre na escuridão contínua do mar
eu vi
avermelhadas planícies
onde minúsculos animais fluorescentes semeiam olhos muito abertos
rasgando o confuso orvalho com suas caudas peludas
enroscando-se no doloroso pulso
transformam-se em pulseiras de sangue
a serpente mineral estrangulando o dedo
e no ombro do mar o adolescente nu reclina o corpo de água
dentro do emaranhado de libélulas enfurecdas voando
voando voando
eu vi







Al Berto.




penso que comentários da minha parte só mancham o poema, portanto limito-me a assinar - nunca poderia dizer nada de pertinente.



J.

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