domingo, abril 24, 2005

Notas.

Sim, o meu dente ainda não cura, mas ainda sofro deliciosamente ao som desta belíssima música de jazz. então pensei, mais uma vez, porque não a escrita, porque não fazer arte com três dias sem saír de casa, e não ter nada para dizer de novo ao mundo, tirando um poema que fiz ontem...?
Podia falar de absolutamente nada, ou de absolutamente tudo; julgo que o resultado vai dar ao mesmo. - viramos as costas, abandonamos a mensagem, e com sorte ela perdurará, ela fingir-se-à eterna. ela irá desmentir, na face ou na mente de alguns, que eu sou uma fraude, um falhanço - enquanto pessoa que escreve. enquanto somente eu, preso à inconstância de um tempo e de um mundo que ainda não domino como quero. Pergunto-me se algum de vocês o domina.
Está um Sol absolutamente feliz, mas tudo aquilo que consigo neste momento sentir é aquela tranquilidade assustadora dos velhos. uma apoteose, fraca, que bate na minha face inchada, enquanto olho pela janela desta cidade absolutamente doentia - Amadora é uma cidade estranha, diria eu há uns meses, mas agora já não direi estranha porque a compreendo muito, muito melhor agora. é uma cidade onde os homicídios têm a mesma importância da primeira passa que uma miúda dá num cigarro, ou no primeiro gemido que soltará; é uma míriade de cinzentismos, metáforas decadentes que percorrem o ar, e pessoas abandonadas à sorte, que morrerão como as árvores. sem ninguém dar conta.
No parque central da cidade os velhos andam devagar ao som das suas articulações, e os miúdos percorrem os caminhos com bicicletas ou amigos e amigas num incerteza que mete dó; e os casais de meia idade que vestem aos fins de semana o fato de treino para irem passear fazem-me relembrar ao sítio onde estou preso, numa vaga já me indiferente de futilidade, e comundade anónima absolutamente assustadora. é necessário elevermo-nos. primarmo-nos por uma genialidade aparente - quem sabe, mesmo que não a pussoamos. e, assim, fico de pé a ver os velhos a jogar à bisca e à sueca nas mesas do parque, ao pé de um lago sujo onde vivem meia dezena de patos, enquanto, olhando para outro lado, meia dúzia de pretos andam em grupo, num domingo à tarde, à procura de miúdos isolados para roubarem. são notas mentais, que vou fazendo - there, but for the grace of God, go I. e depois tento descortinar-me a mim, neste cenário que só eu consegui ver e descortinar, porque não - não pode ser só tudo uma minha fantasia. e então o jazz deixa de fazer sentido ali, e então tenho de me ver à distância, de perfil, vendo-me a olhar absorto para um ponto qualquer num horizonte curto de betão. quem sou eu naquele cenário? será que fujo à homogeneidade normal? e se sim, então porque é que ninguém repara em mim, porque é que ninguém se questiona que eu destoo da paisagem normal que é a dos condenados ao esquecimento ainda enquato vivos. ? - Vamos avançando, abanando a cabeça em descrença de nós mesmos, e enfiamo-nos nos nossos cubículos e, vendo a cidade de cima, fingindo-me voar, não consigo descortinar-me, sou tanto quanto os outros - absurdamente humano.
Notas. pois que o jazz deixe soar elas, enquanto vou já decorando as caras no comboio e no metro, e vou desejando ardentemente que, um dia, os meus filhos possam colocar, quem sabe ainda mais cedo, as mesmas questões que coloquei - que tenham impensáveis momnetos de lucidez extrema e percebam que, ao contrário do que estúpidos niilistas e abstrccionistas existenciais dizem, tudo na verdade faz sentido.
Sim, tudo faz sentido.
Mas ninguém disse que havia algum sentido nisso.


J.

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