E pronto. Ficam aqui esclarecidas as linhas gerais próprias de um pensamento de origem marcadamente rasgada e abstracta, passando pelos ecos silenciosos do telúrico e da raiva – positiva – perante a própria existência. A tartaruga, agora tão distante, parece até normal, aborrecida até, perante o que se avizinha. A realidade, na sua presença forte como uma pedra que tem (terá) sempre algo a dizer, impõe-se sempre… – das maneiras mais incríveis. Não há que negá-lo nem negá-la, e não há que desprezá-la, pois a ela voltar-se-á sempre no fim das coisas todas que acabam, como único (infelizmente, talvez? Desanimadoramente, talvez?) reduto, como único refúgio, mas se a sorte e a pujança de viver o permitirem, o sonho continuará sonho, e as fronteiras permanentes continuarão alcançáveis, sempre, pelo menos em teoria.
“Não nos podes matar!” diz o hipopótamo (que enfim, para os mais atentos, não morreu nem nunca morreu, sendo-lhe dado aliás lugar de destaque no futuro), “então e nós” diz a rapariga da vagina cortada, vira a cabeça Elisa sem o dizer com o seu cabelo vermelho-laranja aos muitos caracóis (apenas uma das infinitas versões que ela apresenta pelos dias que passam por aqui, e por aí, e por lá fora), observa a tartaruga bípede caolha, ; e esta proto-realidade quasi realismo mágico, quasi (sem dúvida, não quase!) surrealismo dentro da própria normalidade da realidade comum? Pois, o tempo, à falta de melhor consideração e para os estados da arte, é sempre uma espiral – ainda que, também nos estados da arte, sempre incompleta e sempre imperfeita, mas uma espiral ainda – à qual far-se-ão, através de ecos, retornos para um presente que nunca verdadeiramente acaba, como outro eco que não se dispersa, nem se desvanece, do centro da própria espiral. Portanto tudo é eterno e isto também ficará aqui e tudo voltará sempre.
Mas e, e…enfim a realidade real, sem subterfúgios, tudo isso, todo tu e todos vocês os dois, hã, e depois, esse depois quando nos é dito que já veio?
Mas ora, é bom nunca ter respostas para tudo.
Tenho agora 11 anos e nunca na vida me senti tão apertado entre as roupas. Dizem-me que estou bonito mas tanto me faz. Estou só à espera para sair. Lá fora dois SS esperam num jipe. Vão fazer a guarda do meu pai. Logo ele, tão importante, logo ele, que está prestes a sair do quarto, austero, inquebrantável na sua farda, como se o mundo só pudesse girar com a sua aprovação. Há muito que eu já estou pronto. Relembro-me de todos os conselhos; com quem devo falar, como devo cumprimentar, e vou cumprir tudo à risca. Sei, no entanto, que não faltará muito até nada disto importar.
É Novembro, em Berlim, 1939
A sala de concertos é imensa. E neste momento, a caminho das suas cadeiras estão as mais altas patentes do Estado e do Exército. Estamos prontos. Esta noite a orquestra vai encarnar Wagner. Algures na Alemanha, à mesma hora, são as carnes dos mongolóides que vão começando a cheirar a queimado, limpando o Reich dos seus incómodos.
Tenho 11 anos, estou em Berlim e eu não sei nada do que vai acontecer. Daqui a uns anos terei uma última granada na mão, estarei escondido entre as ruínas à espera de emboscar um tanque russo que se passeie vitorioso. O meu coração vai bater com toda a força enquanto espreito, escondido. Eu espero, também agora eu espreito. Não falta muito para nada disto importar e mesmo assim a única coisa que agora quero é deixar todos estes adultos orgulhosos. Mas eu vou ficando. Sei tanto que o meu corpo já me dói, falta tanto, falta pouco.
Sou novo de mais, quero pensar que é por isso. Mas a máquina do Tempo não se detém por mim, um dia pensarei o mesmo, quando tiver os olhos fechados, no escuro, as sirenes, um dia. Nada vai parar sem se alterar: Wagner já não o é, e tudo o que me sobra é existência; a música, sempre presente nestas cidades sem voz, tenho agora a mão no bolso, passo com o polegar ao de leve n’A Navalha, no cabo a cruz que não reconheço, no que sei que já deixei. Não é por nós que os momentos vão parar. Ela vem, vejo-a bem, já não tenho 11 anos e consigo vê-la. Vem
assim te espero,
com todos os adeus do mundo preparados,
J.P.