É quase meia-noite.
Amanhã a lividez dos dias será forte, presente;
do alto dos prédios se verá o comprimento
do cinzento que pactua com
a cidade.
Mas o hoje o dia ainda vive,
tossindo; -
feito velho.
Ainda não é a meia-noite.
Temos tempo.
Ainda temos alguns minutos.
P.
[A Navalha deseja a todos os seus clientes, simpatizantes, visitantes, amigos, e "coisas" um excelentíssimo - e cheio de saúde - Natal, a vós, e a todos os que vêm por bem. Um Bem-haja]
A Navalha
domingo, dezembro 24, 2006
terça-feira, dezembro 19, 2006
Wasted state of Mind
Entre Paris, Londres a miúda gira do décimo-segundo que vai ser violada daqui a um quarto de hora e a figura imponente, do meu pai, sentado numa poltrona podre como num trono, a minha casa que o alberga já sem iluminação, vai um mundo de existência que me espera, e separa.
Segui-a para ver se a minha previsão de realizava mesmo, segurando os óculos que me descaíam do cabelo pingado sobre a testa. Havia uma parte de mim que estava terrivelmente assustada. Estou no futuro, neste momento; confronto o meu pai com as boas tardes, o seu olhar vermelho de fúria e as suas mãos do tamanho de cómodas crispam os braços da poltrona, Por onde andaste, quem és (esta pergunta não no tom inquisitório de não saber quem sou, mas no tom de não saber se eu sei o que sou), a memória da tua mãe onde anda? Pai, vou-me embora, vou partir para a América, vi uma miúda a ser violada enquanto passava por baixo da ponte e voltava da escola, já não há nada mais para mim aqui.
A minha irmã cheia de ranho seco pela cara esconde-se com um gemido debaixo da mesa da cozinha. Percebo agora: a casa vai saltar, toda, rugir e saltar num espasmo violento existencial épico. O meu pai ruge e com a força do seu urro principia a levantar-se, e há algo que em mim sua e gosta do que vê – devido a poder sentir que passou por algo importante nesta nossa vida – quando três rufias contentes, tremendamente contentes e felizes, e não é uma felicidade malvada, a apanham, ela grita e eles apresentam-se educadamente enquanto dizem os seus nomes, eu sou o João, Eu sou o Paulo, Eu sou o Luís,
- Paula!!!
Sai-me o primeiro grito sobre-humano desde que nasci, resquícios dos genes sobrenaturais do meu pai, o meu peito explode e os pratos, os talheres e os bibelots com bolor saem como se por acção de um poltergeist dos armários e das gavetas de madeira verde e podre enquanto o telhado treme sob o urro do meu pai: gigantesco. Sim, é a casa que salta e grita, toda.
- Paula!!!
Deixo de ser um menino enquanto escorrego ela relva húmida e relembro-me de toda a minha vida até esse momento, como se acabasse de morrer, enquanto me torno um homem: acabara de sair da escola e de conversar com a Gianda, tinha tido português e tinha retido que Camões foi o verdadeiro poeta épico do mundo, por a sua vida ter sido semelhante aos factos heróicos que narrara; o fantasma da minha mãe com uma túnica cor de rosa a dar-me os bons dias em casa dos meus avós, a primeira vez que saí de casa aos sete anos e deixei a minha irmã e o meu pai em nossa casa sozinhos, tão distantes; o cheiro a canela quando beijei a minha primeira namorada que me enjoou e me fez perceber que ainda era demasiado novo para sentir o que estava a sentir, eu tinha doze anos. E os amigos, as bicicletas e os prédios negros explodindo e cortando contra o vento frio dos dias engolindo partes grandes do céu rosa que se espalha pelas ruas da capital, Paris
E Londres tão longe. Vou-me embora, pai! O que eu quero é ser escritor, não há mais nada que me prenda aqui, nem sequer a este país, vou fugir de ti, da tua presença, da
- Paula!!!
E o grito repetia-se em mim enquanto o meu cérebro me mentia a ponto de já não conseguir saber se era verdade ou mentira que tinha salvo a Paula, ou se tinha antes perdido a Paula, perdido aquilo que me possibilitaria enfrentar tudo daí em frente
- Rapaaaaaaaz!!!!
E o seu grito a arrancar as paredes das fundações, a minha irmã a agarrar-se às pernas da mesa que flutuava no ar, centímetros acima do solo, enquanto se desfazia e apodrecia,
- Paula?
Tudo o que me espera é o desconhecido e a certeza que nada será tão avassalador quanto o meu pai, quanto esta tarde, quanto esta minha entrada na vida adulta, no mundo adulto que já não posso ignorar, como foi ver a casa a desfazer-se no maior assomo de fúria que já vi, a minha irmã de boca aberta e ranho seco pela cara toda, para nunca mais ouvir os seus sons guturais, o fantasma da minha mãe, etéreo e quase indiferente a tudo isso, quanto os meus amigos, os meus três rapazes que violaram a miúda do décimo segundo ano, a
- Paula…
, Nada, não, nunca mais, primeiro Paris, depois Londres, Pai
- Pai, adeus, vou partir para a América, já não há nada para mim aqui
- RaaaaaaaPAAAAAAAAAAAAAAAAAAZ!!!!
…Só me interessa partir, pai.
Adeus.
J.
Amanhã vou a um funeral.
domingo, dezembro 17, 2006
o vento transforma a minha pele em cabedal e tu desapareces, antes que ele sopre o teu nome.
o vento transforma a tua pele em cabedal e a luz pálida do teu reflexo à frente do sol é um momento de descoberta; sentir a maquinaria da natureza, as engrenagens em cada salpico de água;
respirar juventude
a minha pele transforma o vento em cabedal. uma multidão de jovens engravatados sai de dentro de um prédio, suados de tanto dançarem, olhos com olheiras e hálito a álccol, e contemplam o sol pela primeira vez ante um novo silêncio.
eu não fiz nada disto
- penso,
também escolho contemplar o sol
apesar de já o esperar
fico tão aficcionado
emocionado como eles
o vento transforma o sol
em
J.
segunda-feira, dezembro 11, 2006
|sábado, dezembro 09, 2006
O Isqueiro.
Passa pela pele do metal como a fome passa pela acidez da chuva.
Depois, a chama que devora as golfadas de gasolina, afogando o ar.
O isqueiro passa pelo antebraço, desliza no pulso, a palma da mão fá-lo rodar todo num gesto subconsciente.
Reluz o aço polido da face do isqueiro, os reflexos saem distorcidos à velocidade da passagem do isqueiro pela mão, da chama pelo ar quente e seco do cansaço do fogo, dos dedos vermelhos de sangue pisado e unhas roídas.
Fecha-se a tampa com um estalido de polegares, rápido.
Volta-se a fazer deslizar o isqueiro num gesto rápido, reflexivo.
O isqueiro suspeita que “tenha matado uma alcateia de lobos”.
E
O isqueiro lamenta não ter morto o seu mestre antes – quando tinha a chance, claro.
O isqueiro vai sempre persegui-lo, mesmo que o perca, mesmo que as chamas fedorentas do seu pavio embebido em gasolina não se cheirem mais à sua volta. Mesmo que o roubem, caia numa das muitas sarjetas da cidade.
Nome – por gravar. Por gravar mesmo, há um compartimento no isqueiro que permite a gravação de um nome, de um símbolo, de um carácter chinês se fores piroso.
O isqueiro é mais que um isqueiro, este – é um símbolo ou stands for something, pela razão que o isqueiro existe ou decidiu, porque é suposto, nunca mais te largar e/ou traumatizar-te, perseguir-te.
Correndo tudo bem?
Será uma parte de ti.
J.
sexta-feira, dezembro 01, 2006
- J., J., vem ajudar, vem ajudar!
É o som que corta a rua que me faz voltar a cabeça. Uma miúda de sete anos corre desvairada para mim e explica-me, o meu pai morreu quando tentava sair da boca do leão, e tu és o único que pode ajudá-lo.
Thunder up!, penso eu, mas a verdade é que não posso fazer nada. Chovem emos e caem com baques surdos no chão. Danificam mais os monumentos que as pombas.
Não posso fazer nada, já te disse, não posso fazer nada! Continuo a andar e afogo-me num oceano de oxigénio.
Passados dois meses acabo de descer a avenida – aproximo-me do final. Ainda é de manhã como quando irrompia ferrugem líquida do chão e toda a gente me dizia
- deus deus deus és deus deus deus deus
Mando os cornos contra a parede, decido adormecer. Revolto-me, lentamente, enquanto caio. É quase bonito. Mas não é bonito. A avenida, no meu sonho povoado de asmas devido às escuridões, puxa-me de novo para cima.
Ana?
Hã?
- J., J., vem ajudar!
Uma miúda corre na minha direcção, mas de uma rua que corta o passeio sai um homem furioso
- jaaaaaa te disse para não te meteres com esse gajo! – tram! Agarra na miúda pelo braço esquerdo e usa a própria força dela para a atirar com toda a força contra a parede. J., J…., diz com os dentes a saltar e a boca cheia de sangue. A morte está afogar-se no rio Tejo…
Rio-me imenso, puxando a cabeça para trás, mas depois esqueço-me do que ia a dizer. O pai espanca a miúda até deixar de ter sete anos e se tornar numa massa de carne disforme na rua com pouco mais de trinta segundos, ainda quente. O passeio ainda se ri até se partir todo e os emos caem, ainda de vez em quando com baques secos. Deixei o meu carro na garagem. Começo a apagar-me. O mundo, parece-me enquanto me branqueio, é para outras pessoas o
viverem.
- então é assim?
- já estou atrasado. não posso continuar a fazer essa força toda, rasga-se-me o fato. estás confortável?
- vai-te embora, então, peço à Márcia para me ajudar. Levas a esfera?
- amanhã dou-ta quando formos jantar fora.
- de qualquer maneira, ainda faltam mais de sete anos.
- ok. Até logo.
Sons de uma porta a abrir-se, chaves a serem tiradas, entra um feixe de luz pela míriade de vidros