Descendo para o cais do sodré
Eu disse.
- O amor pode ser uma merda.
Ela disse.
- Não sei. mas se o amor for uma merda, ao menos é uma merda bonita.
Olhei para ela como se fosse a primeira vez nessa noite.
- Andava à procura dessa frase há anos.
J.
Eu disse.
- O amor pode ser uma merda.
Ela disse.
- Não sei. mas se o amor for uma merda, ao menos é uma merda bonita.
Olhei para ela como se fosse a primeira vez nessa noite.
- Andava à procura dessa frase há anos.
J.
Gostava de vos falar acerca do que quero que esta banda seja – este específico projecto. Mas antes de tudo gostava de vos agradecer por terem tornado um sonho meu realidade – já o terei dito a todos vocês, mas mais uma vez, oficialmente, digo-o: obrigado. Por me possibilitarem realizar algo que eu sempre quis ter na minha vida, passível de ser agarrado, com as duas mãos, e todo o meu coração, a minha sensibilidade, e a minha paixão por este tipo de arte.
E é justamente o que eu quero que esta banda seja. O que eu quero para esta banda? Simples.
Eu quero que esta banda extravase os limites do ouvinte. Muito simplesmente, quero que o deixe com vontade de chorar, de raiva e de alegria por estar a ouvir algo tão bom, tão sublime – e isso é possível, pois eu já o senti, e sei que vocês já todos o sentiram: uma vontade enorme de rir seguida de um impulso quase insuportável para pegar num instrumento e começar a distribuir SOM. Sónico, perfeito, que fale directamente ao coração, sendo ao mesmo tempo tremendamente inteligente.
Isto é o que eu quero para a nossa banda, para este nosso primeiro projecto. E sei que o conseguiremos, porque estou simplesmente rodeado pelos melhores músicos que poderia pedir para criarem, comigo, algo de verdadeiramente único e belo. Todos vocês têm a mesma sede, o mesmo desejo de fazerem algo diferente, direi épico, e sei-o, porque enquanto meus amigos, temos conversado sobre isso durante anos, desde que nos conhecemos. Quero fazer rock, sim, mas não um rock simples, parte introdutória, refrão, algo entre o outro refrão, refrão e fim. Não quero apenas os três minutos e meio ou os quase cinco minutos esticados – quero-os, se para tal for necessário, mas não quero ficar preso a nenhuma barreira. Quero que todos os dias cheguemos ao estúdio, e no fim do dia saiamos de lá, todos, maravilhados com o que acabámos de criar. Quero solos impossíveis. Quero baterias que mudem a sua cadência mais de cinco, sete vezes durante a música inteira, se for preciso. Quero um piano discreto mas omnipresente que, aqui e ali, consiga dar, só ele, o toque essencial para a absoluta e definitiva catarse – e com isso, sei que posso contar contigo. Quero fazer um álbum que não seja um álbum, mas uma viagem : simultaneamente negro sem ser depressivo, forte sem deixar de ser tremendamente melódico, uma esperança para os dias que virão mas servindo também como instrumento: nostálgico, para podermos olhar para trás nas nossas vidas, e pensarmos “quem me dera ter tido este álbum, antes, nos meus dias”. E um em que o silêncio seja também um instrumento. Quero que, quem nos ouça, tenha a sensação que fizemos este álbum para salvar as nossas vidas, com toda a fúria possível para apagar mundos, mas não quero entrar no punk ou no hardcore. Quero poder ter um interlúdio, se for preciso, de vários minutos numa música com apenas piano e coros, para depois, mais uma vez, deitarmos a casa abaixo com a nossa força. E quero que a voz – a minha – seja, aqui, apenas mais um instrumento.
Quero, no fim de tudo – não fazer apenas um álbum: quero fazer uma peça de arte, mas emotivo o suficiente para deixar os ouvintes no silêncio da sua incredulidade.
Quero o possível. Sei que o poderemos fazer. Sei que não será difícil. Porque a paixão corre-nos pelas veias. Porque sei que não sairemos do estúdio ate termos produzido um dos álbuns mais filha da putamente incríveis da história do rock.
Porque queremos. Porque podemos.
Então…vamos ao trabalho.
J.
clair de line
permitam-me um parêntesis.
"No que toca à reserva aplicada por Portugal, esta é perfeitamente possível de ser realizada, de acordo com o art 19º das CVDT (Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados): a aprovação do acordo ainda não tinha ocorrido, portanto não havia problema algum: o regime relativo às reservas é o da liberdade, desde que cumpram todos os trâmites legal e temporalmente previstos (era o que acontecia neste caso específico). A rejeição de Angola reveste a forma de uma objecção, simples, (art 20 nº 4, primeira parte, CVDT) já que não nos é dito se Angola manifestou expressamente que não desejava a entrada em vigor do acordo entre ela e Portugal (sendo, isso, uma objecção qualificada - art 20º ,nº4, segunda parte). A razão, no entanto, aplicada por Angola, é a de que a reserva de Portugal é contrária ao fim do tratado, o que cria um diferente problema. De acordo com o art 19 c), CVDT, tal levaria à inficácia absoluta do consentimento da reserva, o que faz com que o estado não se torne parte do tratado, neste caso, Portugal. Era, no entanto, a reserva criada por Portugal contrária ao fim do tratado? tal iria, de facto, contra o fim do tratado, que é aparentemente a defesa da língua portuguesa; isso leva-nos a concluir que Portugal não se tornaria parte do tratado por formar uma reserva que cai na alíne c) do art 19º das CVDT (tal é possível em relação à objecção simples de angola pois existe um costume criado em que, para fundamentar a alínea C9, basta fazer-se uma objecção simples).
Finalmente, o caso de Cabo Verde: há uma clara interpretação a uma norma do tratado - não se trata de uma reserva, tal raciocínio advém da interpretação feita por Cabo Verde. Como tal, nenhum efeito relevante seria produzido pela interpretação de Cabo Verde - não penso que o art 31º seja violado, das CVDT, apenas há uma clara errada interpretação ampliativa das normas do tratado."
Isto era, pelo menos, o que eu ainda queria ter escrito no meu teste de DIP, não fosse o intrasigismo da minha caríssima professora no que toca aos dez minutos de compensação. O que escrevi, em relação às duas últimas linhas, escrevi em pé, escrevi pouco, e escrevi mal, porque não tive tempo de ler o fim do enunciado de novo (apenas o tinha lido uma vez ao início). Agora, se tirar negativa, a culpa será minha e só minha, da minha lentidão estúpida, quando o teste era facílimo, e um brinquinho (tenho a certeza) pelo menos até onde escrevi. O que me lixa é que merecia uma grande nota, mas devido à falta de tempo (porque escrevi tanto) não vai ser isso que vai acontecer.
Sabem que mais? regressei terça. Estudei terça, e ontem. Tomem uma musiquinha e digam-me o que acharam: pensei em escolher a melhor das melhores músicas que por cá tinha, mas não estive para isso - esta aqui, dos thrills, tem apenas o condão de ser muito up-beat (nada boa, nesse caso, para emos e góticos).
Não sei mesmo mais que dizer. Só para dizer que senti saudades? senti saudades. Mais uma semana e o P. já tinha metido cá travestis ou sei lá mais que o valha. Ainda bem que cheguei a tempo para salvar isto.
saki-saki!,
J.
musiquinha gira.
Cnémide – [substantivo feminino] 1 espécie de greva metálica usada pelos hoplitas, antigos soldados da infantaria grega; 2 canela da perna, tíbia (Do grego knemis, idos, «greva, polaina», pelo latim cnemide-, «botina militar»)
P.
Deixou-se cair sobre o peito, era uma tão extraordinária máquina. Viveu a viagem de acordo com a euforia dos homens vivos.
Era –
assim, nociva a sua existência provocatória, perante os homens de manto branco, que povoavam os habitáculos do obscurantismo. Esperem só até que volte pois, assim, falava pela força da linguagem. E não seria prisioneiro.
Ao empacotar os livros escritos em copta pelos seus antepassados adoradores de felinos, optou por coçar o queixo (a barba a crescer), antes de finalizar com um último nó, na última caixa, catalogando-a como Frágil.
Impressionante toa aquela adivinhação.
Lá fora fechavam-se as portas do desespero. Concretizava-se a morte da noite e, das cinzas nocturnas da sua solidão, redescobriu – encontrara-se – a sua face de infância, inviolada, não mais para se prostrar.
Quem, entre todos os oradores retóricos que sentenciavam o fim de mais uma era, lhe poderia dizer, Não! Cessa de profetizar.
E Ele concordou. Ele, que já se sentia imenso, era um valor em si próprio, lei absoluta. Navegador sereno nas revoltas ondas mentais que perpetuariam a sua entrega, o último sacrifício, o final.
Deu um passo. Deu outro. e outro e outro já sem se aperceber da velocidade a que corria
Desta vez não serei capturado
Desta vez não me perderei
Não mais morrerei em vão
E acordou.
Não – nunca isso
– de um sonho, mas sim da ilusão que lhe roubara as forças: Vencerei, vencedor que sou.
E a multidão que habitava em suas veias começou a pulsar com ferocidade. Ergueu-se, ela, apaixonada, faminta por heroísmos bacocos, e, de pé, prestou-lhe homenagem.
Num grito mudo, Ele percebeu em tom de pergunta tudo aquilo que se aproximava –
Quem agora me poderá diminuir?
P.
Esta dia está muito, muito terno, sei bem. Atravessando essa mágoa disforme a que chamam de impaciência, sobrevivo à indecisão entre lembrar ou apenas escutar. | Silêncio. |
Espero, entre as gentes repetidas, alguns minutos até perceber que não há forma de partir. Parar muito pouco para pensar ainda menos. A eternidade sussurrada virá depressa?, a vontade de me não perder, onde pára ela?
Sim, são concretizações híbridas.
Pedalavas com elegância no dia em que chegavas. Vinhas pela estrada que partia do palácio das indigências.
Perguntei, Que lugar seria esse, onde a fraqueza impera?
Disseste que não fugias, que raramente desviavas o olhar. Achei natural perguntar pelo teu nome. Fizeste uma pausa. Deixaste-a prolongar-se. Escondeste um sorriso tímido, abriste bem esses teus olhos brilhantes, deixaste a bicicleta cair com alguma violência. Lembro-me de imaginar o que aconteceria se aquele momento fosse saído de um musical. Se teria graça ou seria apenas absurdo. Provavelmente começavas a estalar os dedos, rodopiavas e por essa altura já cantarias uma canção qualquer a plenos pulmões, assim animada. ~
Mas não te mexeste.
Na verdade disseste apenas, Agora já sei para onde vou. E a tua frase pareceu rebentar-me no corpo. Estaquei, chocado, chocado, chocado. Parecias ter o destino traçado, ninguém te poderia trazer à razão dos comuns – já não pertencias àquele espaço.
Muito apressada, voltaste para a bicicleta. Colocaste nos pés nos pedais e, convicta, sentenciaste, Nunca fiques pelo receio da saudade. E foste. Nem tive tempo para te desejar boa sorte. Não importava: tinhas a descoberta a pedalar a teu lado.
Foto: C.
[A foto foi tirada a um placard publicitário, no café Buondi Spazio, perto da estação de Entrecampos; Éramos assim é o nomde do álbum dos portugueses Boitezuleika, que serviu de banda-sonora ao texto]
P.
é um cansaço que toma conta da Terra, Dos rios que correm, como palha líquida, por uma imensidão de morte. Já nem o vento sopra, já não guincham as focas quando são mortas, ou eram, por maças duras, de madeira forte. As essências perderam-se todas, e só restou o cansaço. E se o cansaço impedisse que tudo continuasse a viver, sendo no entanto tão forte que impediria, também, a auto-destruição de todas as coisas? tudo estaria condenado a existir; um sopro indelével, como sémen parado, pulsando ainda.
Tud deixaria de ter sémen, e a esterilidade da Natureza tomaria conta de tudo.
Estou cansado. Voltarei daqui a uma semana. Por estar cansado também não terminarei este post. É cliché, eu sei, mas nesse dia maligno, quando o Sol alinhou a tua face com a minha, algo parou por uns momentos -
o que aconteceu a nós, ninguém contou ainda até ao fim.
O Sempre é apenas uma promessa.
A dúvida - esse grito -
está em perceber o momento
em que não nos poderemos
permitir
menti-la.
P.
A estrada percorreu-se, como um rio. Os pássaros falavam às horas, e as horas caíam; devagar. Ouviu-se o barulho de motores floridos, as presas macias e sem cara,
Ladrões de fruta de olhos grandes a trepar, ou a descer nós retorcidos de portas, joelhos, postes de ferro. Com uma nova mancha de Luz, os pórticos de pedra voltavam a tentar dizer algo, sobre a sua existência imemorial. E a essência da própria antiguidade descansava, longe, entre as fundações de algo mais alto, brilhavam peixes de prata nos labirintos subterrâneos de vida. E o ar, quente e talvez fresco, cheio de perguntas.
Alguns sons, passos…? Seriam passos? Afastaram-se dos pórticos, das visões que nunca ousaram ter, misturando-se com a inexistência do futuro, preso como uma sinapse, nos gostos de cinza deixados pelas primeiras Palavras: irrepetíveis.
E então passaram os Ectovultos. Seriam Homens, aqueles que os viam passar? Grasnavam pelas sementes queimadas da fuligem negra, descreviam círculos em volta do ozono pastoso do Céu. E disse-se Céu, alguém, piscando os olhos devagar, e os mundos inverteram-se. Os Ectovultos fugiram, em terror, e os mortos apaixonaram-se pela vida dos pórticos passados, jovens, querendo destruir o mundo com a força dos seus ecos. E as palavras renasceram de novo, e as árvores deixavam escorrer a seiva dos livros, ainda por escrever, da anterior superfície, esquecidos por terem sido lidos à escuridão das horas desfeitas, rasgadas os pórticos foram a única coisa que sobraram, de pé. Agitavam-se os murmúrios, morriam eles enquanto a terra engolia as Facas. E as Facas caíram para baixo, desafiando os pórticos, que queriam destruir o mundo com os seus ecos, mas eram apenas vencidos pela erva, soprada por um sopro mais inteligível que perceptível. Mas não floresceram – porque precisavam das horas, feitas, e das palavras, desfeitas. E ninguém se dignou de novo a trocar os mortos pelos vivos, pondo tudo, invertido, no lugar certo de cada Sol – e agora, era a água subterrânea que corria como um rio pelo ar, e pela areia quente de diamantes infinitos, pequenos como um deserto de cinza salgada.
Os pórticos gritavam pelos mortos, as palavras cegas, imemoriais, as horas vivas.
Mas apenas restou uma insónia, parecida com o vento, antes de eles não terem compreendido o mistério para trazer, de volta, os peixes dourados – a água subterrânea, as facas como facas e não como erva, o tempo estático dos pórticos silenciosos, a aragem cheia de murmúrios.
A estrada percorreu-se, como um rio.
Quando eu era miúdo, vamos lá localizar-nos, deveria ter uns quatro, cinco, ou mesmo seis anos, decorriam portanto os primeiros anos, bem pequenos, da década de 90, mas dizia eu, Quando eu era miúdo, costumava ir com a minha avó a casa dela, em Lisboa, naqueles dias de férias escolares.
Saíamos de manhã bem cedinho e lá íamos, eu e ela, apanhar o autocarro (era a carreira número 179 – no tempo em que ainda eram de uma cor alaranjada, gasta…hoje em dia são azuis). Pousávamos, enfim, os pés na última paragem, na estação rodoviária de Queluz-Belas – descer o último degrau do autocarro implicava um salto já de uma relativa dificuldade. Não sei ao certo se já havia placares electrónicos a indicar o comboio seguinte mas é provável que não. A passagem de nível de uma plataforma para outra, por exemplo, não era feita por baixo da terra como é hoje em dia. Em vez disso havia uma cancela, muito grande, que não deixava os carros passar com facilidade. Havia também uma sirene que avisava as pessoas de que o pouca-terra vinha aí. E como atravessávamos a passagem de nível quando aquele bicho grande estava parado com o nariz apontado a nós, era bem mais interessante porque havia uma certa noção de aventura: aquilo era “perigoso”, diziam as pessoas na altura. E eu achava uma certa graça à coisa.
Mas onde íamos? Pois, eu e a minha avó lá nos púnhamos no fim da fila, no meio daquela confusão de pessoas a irem para o emprego e assim, para comprarmos os bilhetes (meio bilhete para mim, por favor).
Entrávamos no comboio, que apitava bem alto, e lá íamos. Durante a viagem passava o tempo a olhar pela janela ou a folhear um livro daqueles de miúdos, de capa dura, e exibia-o discretamente, orgulhoso por sentir que já parecia um daqueles adultos que lê no comboio.
A meio da jornada, geralmente, já estava um pouco aborrecido – mas coisa normal nas aventuras pois há sempre um momento mais complicado para os intrépidos aventureiros.
A penúltima estação, de Campolide, estava separada da do Rossio por um túnel imenso, escuro, que entretanto fechou para obras. Na altura em que o comboio desaparecia túnel adentro e deixava de poder espreitar o céu pela janela, já sabia que aquela parte do percurso poderia demorar séculos. Era a altura em que tinha maior urgência em arranjar algo para fazer. Olhava pela janela, na eventualidade de passar outro comboio no sentido inverso, ou então tentava contar as luzes dentro do túnel o que se revelava uma tarefa complicada tendo em conta a velocidade a que íamos, e tudo isto mantendo a vaga esperança de que, só por esta vez, o túnel poderia acabar mais cedo que o habitual. Mas lá se demorava.
Embora estivesse escuro ali dentro eu não tinha medo disso. Confesso, porém, que tinha, isso sim, uma relação bem ambígua com aquele espaço. Naquele tempo a paciência era tudo menos uma virtude.
Rossio.
Não sei bem por quê mas tenho ideia de que fazia sempre sol quando ia a Lisboa. A saída da estação do Rossio parecia ser dominada por uma luz imensa. A partir daí até a casa da minha avó era, talvez, cinco minutos. Atravessava-se a rua, passando junto às arcadas do Teatro D.Maria II, onde a qualquer hora do dia se aglomeravam grupos e grupos de homens, como muçulmanos, africanos, e tantos mais. Subia-se a rua, sensivelmente estreita, e estávamos na Calçada do Garcia. Pisava-se em todos os momentos a tão típica calçada de Lisboa; por ali, perante o olhar vigilante daqueles prédios de fachada antiga, poucos carros passavam. A partir dali o percurso era quase em zigue-zague até se chegar onde se queria. Como a subida era algo íngreme e labiríntica, o que eu fazia era ir um pouco mais à frente. Nessas alturas não queria ir de mão dada; era bem capaz de ir sozinho! O meu plano era sempre correr um pouco por ali acima e depois olhar para trás, triunfante, e esperar pela minha avó que lá vinha um pouco mais abaixo – obviamente que eu tinha de ir à frente dela porque como eu já sabia para onde íamos ela assim só precisava de seguir as minhas fiáveis indicações.
Toda aquela correr tinha um destino final.
A porta do prédio parecia-me enorme, verde escura se não estou em erro. Olhava para um lado e para o outro do passeio, contanto os números dos prédios, para ter a certeza de que não me enganava na porta. A minha avó tirava as chaves da mala, ouvia-se a fechadura rodar, e, pouco depois, ao entrar, ouvia-se um baque forte, que ecoava escadaria acima. Os degraus das escadas pareciam forrados com um material qualquer e desapareciam da vista num pequeno efeito em espiral.
Habitualmente deixávamos a tralha toda no 1º andar, onde a minha avó morava, e logo de seguida subíamos ao 4ºandar para visitar a sua vizinha favorita. A D. Maria Emília, que deveria ter alguns 50 anos. Como a minha avó não sabe ler nem escrever era muitas vezes esta senhora quem punha a minha avó a par das burocracias que chegavam pelo correio. Aos cinco anos, quando já aprendera a ler, oferecia-me muitas vezes para ler as coisas; ora, acontecia é que a maior parte delas estava repleta de palavras bem complicadas e portanto eu até era capaz de dizê-las em voz alta, mas saber o que algumas significavam é que era um caso sério. Mas voltando à vizinha. Dizia de mim que eu não enganava ninguém: tinha um ar reguila (opinião com a qual muita gente concordava), e, segundo ela, isso de ser reguila era algo comum entre os Pedro’s. Para fundamentar a sua ideia falava sempre do filho, ou do sobrinho, que tinha. Convicta, concluía, Deve ser levado do diabo. A minha avó, novamente, concordava. Claro que eu tinha uma forma bem diferente de ver as coisas. Alem disso, até me considerava um rapaz bem comportado…na medida do possível.
E o tempo lá passava, sem me aborrecer grandemente. Distraía-me facilmente com as coisas mais simples. O tédio, esse, só o descobri de verdade quando compreendi o significado da palavra.
De volta ao 1º andar. Ali, onde os meus avós tinham morado (lembro-me da fotografia deles a preto e branco), onde a minha mãe crescera e fugia à volta da mesa da sala quando não queria comer – era danada para comer, queixava-se a minha avó, o que só me dava uma motivação extra para eu próprio protestar quando não queria comer, afinal de contas a minha mãe também o fazia, por que não havia eu de o fazer também?.
Naquele espaço, naquela casa, pequena mas acolhedora, eu sentia todo esse peso do passar dos anos. Sentava-me, a pintar (ou a colorir, como afirmavam os livros), na mesma velha escrivaninha onde a minha mãe fazia os trabalhos de casa; a minha avó, por seu lado, voltava-me a contar as estórias dos animais de estimação que por ali habitaram, desde uma gata recolhida da rua a um agressivo galo-da-índia. Este último era um divertimento incrível para a minha mãe, que o punha em frente ao espelho e delirava ao vê-lo bicar no seu próprio reflexo – ainda hoje ela se gaba da forma como conseguia convencer os pais a levar para casa os mais mirabolantes animais. E assim a minha avó lá ia vestindo a pele de ancião contador de “fábulas”, um papel que todos nós, inevitavelmente, havemos de assumir um dia.
A hora de almoço era passada, na maior parte das vezes, num restaurante ali próximo, na companhia de algumas amigas da minha avó. Para mim era sempre um bitoque – e aqui confesso o meu conservadorismo de então pois a minha escolha não variava.
Mas lá pedia, timidamente, pois era ainda uma coisa nova para mim um desconhecido levar-me à mesa aquilo que eu quisesse. Comia o ovo estrelado, parte da salada, parte do bife e as batatas fritas quase todas e ficava estafado. Ainda demorei uns poucos anos até ter conseguido comer o meu primeiro bitoque inteiro, e sozinho… Mas naquele tempo ainda não.
O almoço lá decorria com a actualização das novidades, os grandes acontecimentos que por ali tinham havido. Quando não havia temas novos, o mais certo era recordarem-se os antigos, e era isso que aquelas senhoras ali à minha volta na mesa tão acaloradamente faziam. Entre as amigas da minha avó recordo-me da Maria Júlia, da qual ainda me lembro porque ainda hoje a conheço, mas que naquela altura a via poucas vezes. Havia ainda a Zira, mais conhecida por ser “a mulher do polícia”, que já se habituara a ser sovada pelo marido, e a D. Rosa, mãe da Zira, que anos depois se viria a suicidar, ao atirar-se para o mar, na Boca do Inferno.
Naquelas tardes de sol a minha vontade seria, muito naturalmente, estar a jogar à bola noutro lado qualquer. No entanto, não era propriamente um esforço passar ali o meu tempo. Como era tudo diferente até o fazia com um certo agrado, além disso havia geralmente recompensa, do estilo comestível, o que era bastante porreiro, independentemente do que quer que isso possa dizer sobre a minha pessoa. Aqueles dias eram dias para…conhecer.
Bem, a vida não poderia parar ali, naquela rua mais central, que eventualmente terminava junto ao hospital. Assim, o que eu e a minha avó fazíamos era descer uma escadaria ali nas redondezas, imensa, que acabava bem perto do Terreiro do Paço. A partir daí voltávamos à zona do Rossio. Dias havia em que ficava a dormir lá em casa. Uma cama – que devia ter algum condimento mágico pois era aberta a partir do móvel da sala para, de manhã, com um gesto simples, desaparecer novamente no móvel – servia de poiso. Acontece que a maior parte das vezes voltava mesmo para minha casa nesse dia, mas já lá vamos. Pelo meio da tarde, passávamos bem no coração da cidade, com o castelo de S. Jorge, ao longe, que parecia conseguir sombrear toda a cidade a partir da colina. Atravessávamos o Martim Moniz, passando por uma ourivesaria onde a minha irmã furara as orelhas para usar os primeiros brincos e onde a minha avó costumava trocar a pilha do relógio. Mais à frente a minha avó voltava a contar um pouco de como eram os armazéns do Chiado antes do incêndio e eu lá me punha a imaginar que, se fosse como nos meus sonhos, eu teria poderes fantásticos e apagava aquilo tudo de uma forma engenhosa. Tudo isto acontecia ao mesmo tempo que as obras.
A dada altura lá apanhávamos o transporte, que poderia ser uma autocarro, mas nos dias de sorte era um daqueles eléctricos dos antigos e eu até podia carregar no botão para parar. Íamos até à zona de Santos ter com a minha mãe ao emprego dela, onde eu poderia debater com o colega dela (o Sr. Carlos) acerca dos jogos de futebol. Ficava-se por ali até à hora de saída, um pouco depois das 17h, até que descíamos os três (a minha avó, a minha mãe e eu, que ia mais à frente para ser o primeiro a descobrir o carro) para ir ter com o meu pai, que nos esperava.
De regresso a casa, o sol de fim de tarde tinha o terrível hábito de me deixar ensonado. Mas não adormecia, não ali, não tão cedo. O dia ainda não acabara e certamente que ainda havia tempo para fazer qualquer coisa antes de ir dormir.
P.
Hoje eu redescobri a beleza de um cd que já tenho há mais de um ano e meio, e do qual nunca tinha gostado; voltei a ganhar e a ter na minha vida uma das pessoas mais especiais que tornaram, decerto, a minha estada no planeta terra mais bela, tendo-a já perdido há mais de um ano; e percebi, apesar de estar sozinho, algo confuso, e com um teste importante quarta feira para o qual não estudei nada; que estava, que sou feliz - apesar de todas estas vicissitudes na vida; - e outras.
Feliz porque olho tudo para trás na minha vida (e como sabe bem voltarmos a encontrar amigos que julgávamos mortos, mortos mesmo, presos a um período específico das nossas vidas, e que agora tivemos a oportunidade de fazer retornar à vida!), e percebo; não importa a vida que tivemos, ou temos, ou não temos! - importa é gostar da pessoa em que nós, com a ajuda dela, nos tornámos.
E eu olho para a minha vida, e para mim, hoje.
Agora.
E gosto daquilo em que me tornei. Acho que sou um gajo porreiro.
E não preciso de mais nada.
J.
Como a Navalha é um sítio de mudanças, e como já passou tempo demais desde o nosso último post para podermos usar como desculpa que temos andado a estudar alarvemente, daí a falta de tempo, pode-se dizer que é hoje que começa um novo ciclo do nosso blog. eu devia dizer alguma coisa mais inspirada, talvez, mas são as dez e meia da manhã, e ainda tenho demasiado sono nos olhos para criar mundos inspirados de sabedoria escrita. também não consigo deixar de olhar para os cavalos presentes nas obras do P.
E, para celebrar o novo ano d'A Navalha (além das fotos dúbias e pseudo-artísticas que postámos da nossa pessoa), decidimos incorporar um novo elemento ao nosso blog; não, não são fotos de miúdas giras. Para isso têm este blog. (viram? também aprendi agora mesmo a fazer isto). Na verdade, é música - algo que eu e o P. já queríamos ver há muito tempo incorporado no nosso blog. Ao invés de vos deixarmos ouvir música (como, por exemplo, neste blog ...já chega de falar neles irra), decidimos dar-vos mesmo a música: ou seja, neste caso, podem dirigir-se ao link que vos apresentamos no fim do post, fazem o download da música, e podem desfrutá-la quando bem entenderem (que catita). A música para hoje, porque é a primeira, diz respeito a um momento interessante nas nossas vidas: foi a música que estávamos a ouvir enquanto escrevíamos, há pouco mais de um ano, as primeiras linhas para este blog. Só faz sentido que, passado um ano, relembremos A Navalha da mesma maneira com que ela foi criada.
E portanto, antes da dita cuja,queria agradecer ao brasileiro indie, que se encontra radicado aqui (agora que sei fazer isto nunca mais me calo), a oportunidade de lhe ter roubado à descarada o segredo bem guardado deste site. Mas eu também vou postar mais músicas do que ele.
cliquem no link em baixo e seleccionem download (no duh)
http://popvert.multiply.com/music
J.
(J., quando não está sozinho a bloggar, é um indivíduo bem catita e bem disposto. Os seus maiores interesses são jardinagem, dar longos passeios pela praia, e tentar convencer as pessoas que a maioria dos filósofos eram todos uma cambada de gays.)