Um ano.
Caraças, um ano. Que diz isso de nós? Esperem um pouco, não importa falarmos disso agora. Vamos...recordar-nos:
Há um ano, éramos caloiros, ainda a descobrir formas novas de viver a nossa curta vida.
Há um ano, éramos como éramos agora: riamo-nos, insultávamo-nos, acreditávamos um no outro.
Acima de tudo, há um ano, penso que acreditávamos na saudade. Ou no poder dela. Nunca nos tínhamos fartado dela ainda.
Há um ano…? Fazia Sol. Temos as fotos para o comprovar. Há um ano fazia Sol, e documentámos a criação do nosso blog em filme.
Em risos, com fé num projecto – obra de arte que ainda hoje existe, esse gesto, sempre sem parar.
Há um ano amávamos a escrita, a música, a vida, Lisboa. Hoje, ainda mais.
Que mais há um ano? Mas será que importa…? Sim, importa muito. Somos tudo o que somos, mas aqui somos apenas parte de nós mesmos – então, como explicar que nos sentimos tão completos? Pelo menos aqui. Pelo menos com todos os leitores, com todas as amizades (e mais…) que criámos ao longo do caminho.
Do Nosso caminho. Da nossa viagem.
Curta, sim, mas todos os dias maior.
Olho lá para fora, e está Sol, como há um ano. Lembro-me do valor do amor, da amizade, das saudades. De tudo aquilo que gostamos de sentir falta, mesmo quando temos justamente tudo isso.
Olho para o lado, para o meu companheiro de escrita (e quem está a escrever este texto?); e tudo parece mais completo. Ainda as palavras, sempre elas.
Olho para o céu, e ainda bem que nuvens intervalam o azul infinito: assim não me deixam ver o que virá, se um dia tentar perscrutar o futuro. Daqui a um ano, quem sabe.
E, agora, podemos fazer a pergunta: que faz isso de nós? Um ano, cheio de textos, piadas, poemas, imagens – momentos? Que tipo de pessoa somos, devido à Navalha, e será que ela tirou algo de nós? Não, quanto muito, deu.
Mas como é possível algo que é nosso dar-nos o que quer que seja?
Está Sol e não parámos de escrever; mas temos tempo... é tudo aquilo de que precisamos. Este dia será mais um, curto, sereno, com a sensação de pertença de quem sabe que por aqui as coisas não faltam.
Quem seremos no próximo ano?...
Olho de novo lá para fora. Repito, para mim mesmo: está Sol, como há um ano.
Então, percebo que não vale a pena saber a resposta.
P.
J.
Obrigado a todos.
João/Pedro.
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Algumas considerações a propósito da origem deste espaço
A Navalha surge-nos como um projecto definido na sua própria in definição. Uma construção feita a partir de uma ideia, de um conceito. E que sabíamos dest’A Navalha quando a criámos? Apenas que queríamos dar um rumo diferente ao andar da carruagem nesse momento específico das nossas vidas.
Criar um segundo blog, com o intuito de ser o nosso único, implicava, intencionalmente, o romper com o que anteriormente criávamos. Tal gesto não se deve a descrédito ou falta de orgulho para com as criações anteriores – pelo contrário, todos os processos de aprendizagem possuem o seu devido valor. Mas o que seria este passo: A Navalha? Categorizá-la como um blog literário seria sem dúvida redutor. É um espaço de criação, porventura artístico, com toda a certeza uma forma de acção. E assim agimos, em conformidade com as nossas ideias. Um ano de existência marca apenas uma solenidade. Na verdade, não descuramos a noção de responsabilidade pela qual quisemos pautar os nossos actos navalhados desde o primeiro instante. Abrimos um espaço em branco e com orgulho se vai preenchendo o vazio que outrora imperava. A referência é, mesmo agora, oferecer algo. Uma espécie de – se não de facto – um exercício de dedicação. Os autores deste blog, apesar da imposição em contrário por diversos momentos fruto das circunstâncias, não mais perderam o gosto por vos escrever. Mais do que isso, escrever, individualmente ou em conjunto, desde cedo fez parte do tecido membranoso que define a nossa relação (de amizade, diríamos) e que sempre nos tem acompanhado. Tanto eu como o J. continuamos a escrever para além das muralhas d’A Navalha – acontece que é essa mesma noção de responsabilidade para com esta arma que em tantos momentos nos serviu de propulsor para mais um texto, mais umas palavras, enfim, algo mais.
No entanto, realce-se, há todo um sentimento ilusório de perpetuidade inerente ao facto de deixarmos num espaço de fácil acesso – democrático, disponível para quem quer que o venha a visitar –, algo nosso. Com maior ou menor complexidade, com humor ou como mero exercício criativo, a verdade é que A Navalha foi definindo a sua própria personalidade, Hoje já podemos afirmar (dispensando a retórica política) que não perdemos o rumo.
E assim Ela prossegue.
Finalmente, parece-me de todo necessário acrescentar que não faremos grandes projecções ou conjecturas para o futuro que se avizinha. Meramente afirmamos o quanto apreciamos a reciprocidade a que temos tido direito, os comentários, as críticas…abdicando de preconceitos em relação a lugares comuns, a verade é que A Navalha não pertence só a nós. É também vossa.
E é Aqui que poderemos confluir.
P.
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Diálogo Entre Dois Génios, Parte I
P. - É, não é?
J. - É.
J./P.
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Talvez Outro Ano.
É engraçado ver o ano que se avizinha, como o que passou. Não apenas enquanto bloguista (belo termo…), mas, obviamente, também como pessoa. Mudámos o suficiente, o P. e eu, acho, para podermos continuar a, passados tantos anos de amizade (ok, não assim tantos… quatro, ou quatro anos e meio), estar iguais a nós mesmos, no que é mais importante. Isso deixa-me feliz.
Isso deixa-me descansado.
Quando A Navalha começou, onde andávamos nós? Solteiros e bons rapazes… caloiros de faculdades às quais ainda pertencemos, encantados ainda um com o outro na nossa idiotice tremenda como no primeiro dia em que nos decidimos insultar só parar nos rirmos, no meio da rua. Ok, isto talvez pareça romântico demais, não é…? Não há outra maneira de olhar as coisas, que não seja com uma saudável nostalgia. E, agora que penso em tudo o que queria fazer, talvez tenha falhado, talvez tenhamos falhado em tudo – talvez a Navalha não é, hoje, o que era suposto ter sido sempre – ou talvez tenha sido sempre, justamente, isso. É preciso pensarmos sempre, quase constantemente, nesse aspecto. Mas a obra de arte não pode controlar o artista.
Porque é com um gozo tremendo que, ainda hoje, vejo A Navalha como um passatempo entre dois amigos, saudável e grátes, – um projecto, igual aos tempos em que estávamos nas aulas, cada um com o seu phone na orelha, a ouvir música, trocar bocas, e escrever piadas. Uma obra de juventude, porque ainda me sinto jovem, eterna, que, com sorte, me irá ultrapassar. Algo sem importância, mas porque nos define, porque também é parte da nossa amizade, tem toda a importância do mundo.
E, isso, nunca ninguém me poderá tirar.
Sei que ainda não é o aniversário d’A Navalha mas…
Até daqui a um ano.
J.
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Em agradável Português...
gancar – [substantivo masculino] lavrador indiano que cultiva terras que arroteou; cobrador de rendas, na Índia. (do concani gamvkar, «senhor da aldeia»)
P.
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Crítica a O Meu Pai
Um coágulo de sangue começa a formar-se na garganta, impede-o de respirar, mas, de repente, tudo se altera e sai vomitado todo o espírito flagelado, COSPE-O! COSPE-O!
Caros telespectadores, é oficial:
- J. acaba de concretizar o primeiro poema neo-geno-monalítico-moderno-desenfreado. E é, como não poderia deixar de ser, uma concretização hímnica que acordou do mundo dos mortos o fantasma de Hoderlin, que se encontrava ainda fechado nos confins da mais negra torre de marfim. E que poeta! (referindo-me a J.)
Ponto de situação: se estiverem a fazer o pino no preciso momento em que lêem este delicioso O Meu Pai, certamente já terão percebido que, perante vós, está um poema que do ponto de vista pictórico mais parece um autêntico plano dos passos de dança a concretizar durante uma qualquer aula de sapateado para a 3ªidade, na casa de saúde lá do sítio; mais, se o mundo fosse justo, J. teria postado este mesmo poema várias vezes, de facto, sou apologista de que o deveria postar continuamente de tal modo que tome conta d’A Navalha; na verdade, e antes de passar ao poema propriamente dito de uma perspectiva estética, creio que é meu dever dizer que a minha vontade é desistir de escrever neste blog pois após a leitura de tão brutal poema não mais me sentirei digno de partilhar o mesmo espaço bloguístico com o meu caro mestre, J. (só não o farei efectivamente porque as remunerações com pensam e a vida está cara).
E prontes, resta-me dizer que deste poema brotam a rodos dúvidas existenciais. Que Pai será este? O pai de J.? Deus? Ambos? Uma personificação de um anjo mórbido qualquer? A minha gata? Bem, sabemos apenas que é…Pai. E que dizer do amor que vigora em todas as estrofes, numa construção plena de êxtase. De contemplação! A admiração de J. é admirável e isso é algo que admiro.
Como dizia Noam Chomsky, na sua obra A Manipulação dos Media (1991): “Todos eles são mudos”.
É verdade, mas este Pai, pai? Pai. é sublime. Reparem agora no quinto verso quando J. diz, tão simplesmente…”tu”. Seria ridículo pensar que não há um piscar de olho ao esoterismo da maçonaria e suas ramificações na sociedade portuguesa. Não percebem? Recuem então um pouco e leiam a passagem em que J. revela “feliz paizinho”. O meu coração bate mais forte, entorpecido, magoado mas sorridente, ao pensar na imagem mental que isto desperta - a imagem de uma criança esfaimada durante os meados do século XII, durante o cerco de Lisboa pelos mouros, que olha para seu pai, cavaleiro armado choramingando…feliz paizinho. A beleza! Que delicioso, creio que J. terá demorado anos na elaboração de tão famigerada contemplação; resguardou-se, preparou o mundo para a libertação do seu primogénito, e zás, aqui o temos, um grito para a eternidade. E que grito, este. E que grito…
Mas precipitemo-nos para o fim: a sequência final é absolutamente devastadora. Num momento somos dizimados com a questão em tom afirmativo de “pai ou pai”, ficamos atordoados, sem saber o que dizer, quase implorando por um pouco mais; essa satisfação surge, enfim, num gesto de generosa divindade por parte do Poeta (J., se bem se lembram), ficamos num suspiro final a saber devoção total do nosso predilecto autor, “tu sempre!”.
É isso que te concedemos, Ó ronco fulminante, poeta felino, seu astro milenar. A J.
Tu sempre!
P.
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O Meu Pai
O Meu pai, pai,
que gosto de ti pai é
o meu
feliz paizinho, és
tu
pai ou pai
tu sempre!
J.
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Crítica a " homem-fêmea".
Pensava em não sentar-me, nunca escrever esta crítica, não só por me considerar indigno (as obras de P. parecem produzir esses deliciosamente nefasto efeito em mim), mas também por me considerar incapaz. Enfim, podia especular sobre as escolhas que me levaram a fazê-lo, mas a única prende-se com o amor: amor pelo P., pela sua obra, pelos contornos do seu corpo que admirei de longe quando, numa festa de beneficência para crianças com síndroma de asperge, tivemos o prazer de nos cruzar. Entre dois copos de porto branco seco, mas o meu com um dedo fino de aguardente velha em balão, por favor, dizia ele, explicou-me que toda a arte era os testículos que descobriu que a sua avó tinha, com cinco anos, quando deixou cair os playmobil para debaixo da sua saia rodada com um lagarto desenhado. Se formos bem a ver, tudo são os testículos de uma mulher, numa roleta de casino atados aos postes da indiferença imoral, e neo-contemporânea,explicou-me.; Pois o presente morreu à muito.
O que nos traz para esta nossa obra, o homem fêmea. Ao primeiro relance reparo logo no ponto principal do quadro, enquanto tema recorrente: o cavalo (mais uma vez) à espreita em todo o quadro. Desta vez, com a composição de cores e luta entre o redondo/recto, P. deu-lhe um nome: Ezequiel, ou Jeremias, não sei bem discernir a diferença e ter uma certeza, enquanto mero iniciado. Mas é notório, claro. Todo o quadro é quase, como que uma vinheta, em que Ezequiel, o cavalo, percorre as planícies de metal que povoam o imaginário de P. entre o vértice inferior direito e a terceira linha riscada, vemos uma escultura de uma mulher feita em vómito solidificado – e não será apenas este caminho com o abstraccionismo melódico uma forma de provar, com a língua e com as axilas, o sabor da composição das cores nos quadros de P.? aqui, elas dizem muito mais do que o nome do cavalo, mostram um pintor tentando desesperadamente fugir às amarras do sexo, e da comida – grelhada, claro está, que para os puristas, não tem sabor. Como entendê-lo? Que não se o tente. E como explicar a mulher a beijar a estátua, desenhada claramente num estilo híbrido, quase como se Miro tivesse sido fauvista? Pois o olhar fauve espreita por todo o quadro – é suposto as cores estarem invertidas, as formas inchadas, os dois amantes disformes enquanto segredam um ao outro, pela composição corporal, o carro que irão comprar daí a dois anos e meio.
Tudo isto me custa. Falar da obra de P. não é falar do presente – é falar do futuro, que ainda está para vir. É tentar encontrar –ismos, para o que ainda está para vir. P. envergonha Kandinsky, escarnece dos parcos críticos que ainda tentam colar P. às raízes surrealistas do suprematismo (!), e, enfim, espanca com palmadinhas no rabo os expressionistas, como um mestre os seus alunos, mas pouca força por favor.
E P. faz-nos sentir pena de Ezequiel, mesmo que saibamos que ele pisoteou um mendigo na sua fuga até ele morrer – e acreditamos que até os cavalos feitos de cristal podem viver, sobreviver, e espantarem-nos com os seus galopes inconstantes de freira, em mares de cinza chorados que, genialmente, aparecem da parte de baixo do quadro. No fim, tudo se conjuga, tudo faz sentido – e tudo aquilo que apenas consigo ver, quando pouso o copo com compal, é um par de testículos – um par de redondos, peludos testículos, pertencentes a uma velhinha pura, cheia de vida, rindo-se de um miúdo que aos cinco anos decidiu pela primeira vez, ao olhar para o tecto ao invés de para os playmobils no chão, sonhar.
Tudo o resto são pontes feitas de unhas.
J.
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O homem - fêmea.
P.
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Pum-
rak-ta-cyna-minapum-rak-tasta-pum-pum.
P.
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Crítica a "Dragan com a sua espada Steel Blade nas montanhas de Rorix.
Deus ouviu então a voz do rapaz, e o anjo de Deus chamou Agar desde os céus e disse-lhe: “Que tens, Agar? Não tenhas medo, porque Deus tem escutado a voz do rapaz ali onde está”(Génesis 21:17).
Esta poderia ser a sinopse para o cenário cinematográfico, diria épico, que temos perante nós. Peço-vos agora que centrem a vossa atenção no quadro exibido mais abaixo.
J. mostra-nos todo o seu potencial para as artes de expressão visual, narrando, em autêntico manifesto, uma evidente cena do quotidiano das tripos nómadas da Mongólia. Toda a obra está progressivamente impregnada de uma pureza e libertinagem criativa que poderia remontar aos finais do séc. XI, na urbe parisiense. Reparem agora na feroz mancha rosada que, vista num plano único, se trata de uma fogosa Fénix. Na verdade, todos os traços passíveis de incongruências são anulados – J. não se fez rogado e exibe-se em todo o seu esplendor, fazendo um claro tributo aos impressionistas russos. Simplesmente brutal. Se piscarmos os olhos por três vezes, toda a obra ganha um movimento aparente, uma esclarecedora mutação andrógina. É de aplaudir, meus senhores, de aplaudir em pé.
É claro que todos nos questionamos: que figura irracional é essa que dá pelo nome de dragan?
Primeiramente, este opúsculo não pode ser devidamente admirado sem termos em conta as consequências do ponto de vista crítico: politicamente, é um grito dos mais oprimidos; sociologicamente, é dotado de um terrível capacidade para abalar as fundições históricas sob as quais se cimenta todo o sistema vigente.
Em segundo lugar, para além da contemporaneidade deste gesto artístico, não consigo deixar de crer que se trata de uma obra extraída das entranhas sentimentais feridas de um artista revoltado com os caminhos sinuosos pelos quais o pós-modernismo tem enveredado. O cenário idílico, as montanhas escarpadas, que, se observarem com atenção, atormentam o nobre poeta-ninja (que assume aqui contornos nitidamente auto-biográficos) de cabelos revoltos, são trespassadas a sangue frio pelos navalhantes caminhos-de-ferro.
Que ousadia!
Atrever-me-ia a dizer que se trata de mais uma subtil (mas tão gritante) crítica ao violento progresso. Uma dicotomia estrondosa! Não consigo evitar verter uma lágrima ao imaginar o sofrimento deste jovem, órfão de pais num mundo que não tem respeito pelos valores familiares.
Obrigado, J., pela perfeição na execução de tão complexa empresa artística. Este fenómeno de expressão gradativa, que perpassa todo o quadro, é um claro sinal do fim dos tempos. Todas as personagens intervenientes mesclam-se num psicadélico bailado que parece aproximar-se, a passos largos, perigosamente, do penhasco. As dúvidas incessantes! A tensão!
Apraz-me dizer que admirar algo assim é uma necessidade moral. Só nos resta a todos nós, comuns mortais, rezar pela brevidade de futuras criações por parte deste génio monstruoso, J., que ruge para a tela, dando-nos um vislumbre concreto sobre a decadência dos tempos vindouros.
P.
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Posts Bajuladores, Vol. I
O P. foi o único homem que até hoje me fez sentir mulher.
J.
(P.S. esta semana é de comemoração, portanto comentem, digam parvoíces como nós, e riam-se alarvamente das nossas tentativas falhadas de ter algum tipo de piada. se forem precisos pontos de exclamação para galvanizar mais o pessoal, a gente também pode arranjar disso.)
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Dragan com a sua espada steel blade nas montanhas de Rorix.
J.
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Crítica a Mundo Cão.
Já dizia Cervantes, enquanto tomava o seu copo de chá, que toda a bosta se erguia nos nossos sonhos para nos atormentar na vida real. O escriba não sabe se, tendo de facto em conta a mediania do escritor, tal se pode aplicar a tudo na nossa vida: mas se a P. esta regra é também universal, pois bem, ele acaba de ser o primeiro poeta a, categoricamente, pegar nessa bosta e transformá-la na maior coisa desde que este mundo viu nascer Pessoa, ultrapassando-o largamente.
O poema Mundo Cão não merece sequer ser transcrito – a sua beleza ultrapassa qualquer forma de papel que o esteja disposto a albergar. E, no entanto, antes de se ler, sequer, o poema, ninguém pode ficar indiferente à forma emocionante (e que, decerto, fará imediatamente emocionar as pessoas mais insensíveis) como as estrofes dançam no papel, num desenho que poderia lembrar perfeitamente a cabeça de um cavalo – se rodássemos a folha para a esquerda. P. não se limita a escrever, maravilhosamente, e a colocar perguntas novas que nenhum poeta antes se tinha lembrado – ele mescla artes num desígnio tão genial quanto esotérico, tão simples quanto sublime, tão árido quanto húmido.
Mas, e o poema em si? E, senhores – que poema. P. consegue, neste poema específico, o impossível – une estilos poéticos aparentemente irreconciliáveis, diz o nada sem dizer tudo, e o tudo sem dizer, ainda assim, o nada, conseguindo sobrar alguma coisa para outro tudo ou outro nada dizer. Vejo automaticamente uma junção com a escola pós-modernista alemã e o futurismo português, com a presença, incontornável (ao fim e ao cabo, o ponto de honra da genial obra de P.!) do dadaísmo pré-surrealista dos anos, polvilhando, aqui e ali, com um sensacionismo telegráfico que fria Whitman corar, aplicando as regras arquitectónicas da falecida escola Bauhaus, provando que a poesia pode servir-se da arquitectura para, qual edifício belo de olhar, e de se viver (pois vivemos nos poemas de P., como na mais deliciosa prisão sem possibilidades de liberdade condicional), se estruturar como uma estátua de Magritte, se este tivesse sido, para nosso deleite, escultor, evidentemente. Apenas podemos imaginar.
E este Mundo Cão, meu Deus, como se desenrola – a primeira estrofe termina numa genial onomatopeia, no uso mais genial de uma onomatopeia que eu vi desde os trabalhos de Fernando Pessoa com 17 anos (para os conneiseurs, de facto, o período mais prolífico e genial do célebre, mas não genial, poeta) – o woof woof faz-nos recordar a nossa condição de homens, de bestas pacatas enquanto lemos os poemas de P., pois é justamente de odiosas bestas que nos tratamos, por não o conseguirmos compreender. E P. sabe-o, mas, benevolente, dá esta pérola ao leitor, um memorando gentil para abandonar a leitura nesse preciso instante, e nunca mais tentar compreender a genialidade fulgente deste Sol, vivendo para sempre na mais completa das escuridões; e, ainda assim, a onomatopeia faz a ponte entre todo o século XX (que começa, obviamente, apenas com o quadro de Picasso, as mademoiselles de Avinhão), a nível artístico, e o início deste novo mundo; e P., incrível, sabe-o, e é quase como um murro na cara, de fazer soltar o sangue, o gritante choque do woof woof – que é tanto mais do que uma simples expressão, onomatopeia, palavra. Transformada em números anuncia a data da segunda vinda de Cristo, invertida, anuncia o nome da nova corrente estilística na arte fotográfica que virá daqui a sensivelmente dezassete anos. O Eu, cão, anterior, e o uso do travessão – meu Deus, aquele travessão! Como uma faca a provocar o woof woof, que ainda assim brilha no seu esplendor, sem medos, e rouba o momento alto da primeira estrofe! – Transportam o poeta de imediato para outro mundo – é de todo óbvio que ele não se limita a falar pelos olhos de um cão – P. É o cão, transformou-se num cão, teve de simplificar a sua arte ao máximo para este mundo a compreender, e, na melhor das hipóteses, suportar. Nosso superior, fez de nós seus donos, ao nos dar a sua poesia e admitir a sua condição, física – e, de novo, a onomatopeia a provocar as primeiras lágrimas.
Dever-me-ia ficar por aqui, pois sou indigno – sinto-me indigno – de escrever acerca de um poema de P. De referir apenas mais uma onomatopeia na segunda estrofe, estrofe essa que se prolonga um pouco mais que todas as outras, dizendo que a poesia é sofrimento, é levar os olhos até ao fim da folha, mas recompensando-nos no final com duas estrofes mais curtas, e uma última exigindo um último esforço; de referir a forma como o poema acaba, numa interrogação declarativa – como, afinal, toda a vida fosse uma interrogação sem resposta possível, não valendo sequer a pena colocar a pergunta a nós mesmos, ou ao leitor – enfim, se P. não consegue, ou não quer responder à questão por ele mesmo formulada, não seremos nós que o conseguiremos. Mas o oh como me poderia eu coçar parece querer dizer tanto, e significar tanto, como uma lembrança à nossa condição, como uma metáfora para os conflitos adormecidos na Coreia do norte (sendo a segunda vez no poema que o faz, já que muito declaradamente nos relembra para esse problema adormecido na forma como coloca, sem virgula antes ou depois, a palavra ladro, como um grito de revolta), como, enfim, o próprio desespero do poeta em sobreviver a esta vida fútil e estúpida… concluindo, muito mais poderia ser dito sobre este genial poema de Pedro Pina, que o coloca em terceiro na linha de sucessão normal da nossa poesia – Camões, Pessoa, e P. e, quando a leitura acaba, nada mais resta – apenas um vazio, o sabor do sal seco das lágrimas na fronte, uma fome de nos sentirmos violados, pois até isso nos lavaria da sujidade com que P. nos brinda quando desviamos os olhos da sua poesia e olhamos para o mundo em frente. E, ainda assim, antes de me deitar e adormcer, não é só o poema inteiro que me sai da cabeça. É uma quarta estrofe, mais alta que as outras, mais furiosa que tudo o resto, como uma verdade universal, um grito de guerra, e ainda assim, talvez, uma esperança que a humanidade pode melhorar com a poesia de P. - e ladro.
Resta-me uma estrofe de Pessoa, que se coaduna perfeitamente com este momento, e me deixará, finalmente, no silêncio:
“Now she is risen. Look how she looks down,”
J.
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Mundo cão
Eu, cão - woof woof
tenho pêlo e mandibulas, béu béu
cão que sou
e ladro
Oh como me poderia eu coçar
P.
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Comunicado: Festival Comemorativo D'A Navalha tem início!
Como (não) sabem, aproxima-se o primeiro aniversário da data em que eu e o P gostamos de relembrar como O dia em que o mundo inteiro começou a mudar para algo melhor, em que começou assim, vá lá, a ter um certo estilo, charme, e mais jeito na aproximação ao sexo oposto com resultados concretos e muito mais positivos no geral; ou seja, por outras palavras, o dia em que A Navalha, blog absolutamente genial, foi criada (devia antes ser criado, mas fica mal, porque para nós aliás, A Navalha é uma miúda, é a nossa miúda, aquela com quem não andamos mas apresentamos com orgulho aos nossos amigos). O que pretendemos é fazer assim uma semaninha de festas debochadas e celebrações libertárias meias saloias, coisa pouca, coisa poucochinha, em que também terá lugar, decerto, o onanismo, físico e metafísico, e também, acho que merecemos a bajulação ordinária e descarada em relação um ou outro, acompanhadas de gargalhadas porcas que vos farão lembrar certamente o nosso querido compincha Alberto João Jardim (ele vem cá todos os dias, acreditem). Muitas surpresinhas vos aguardam, amiguinhos, portanto não se esqueçam de passar por cá regularmente! Temos a certeza de que, passada esta semana cheia de loucura e risinhos à pita parva, vão-nos adorar ainda mais, se é que isso é sequer possível!; ou, na pior das hipóteses, fugir pela vossa vida e nunca mais cá por os pés. De qualquer modo, fiquem ligados. Oficialmente, começa amanha A SEMANA COMEMORATIVA D’A NAVALHA!
(olha ‘pra nós agora tão gays)
yupiiiiiiiiiiiii…!
J/P
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Poizé, é sexta feira.
Demorei-me em frente à folha virtual vazia. Escrevia um post cómico, ou verídico? Contava uma história, ou passava um qualquer perdido poema? comentava o tempo, ou falava de um disco, de um filme, de um livro? abstraccionava ou era prático? punha uma imagem, ou limitava-me à escrita?
Bufei, apaguei o word, e desisti.
J.
(P.S., uma nota de agradecimento e contentamento às duas nossas últimas - que nós saibamos - leitoras que descobriram a Navalha, mesmo que só tenham passado por cá, Tatiana e Charlotte. A emissão segue dentro de momentos)
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O psiquiatra.
Sexo, sexo, sexo. Só consigo pensar em sexo.
[um homem de meia-idade, baixo, careca, entra no consultório]
- Está a ver este relógio?...
é sempre o mesmo. Vai falar e falar durante uma hora num violento monólogo.
Quero sexo, quero algo, porra.
Não tem vida pessoal, profissional ou de qualquer tipo, mas é um traumatizado que para aí anda, sempre a queixar-se de que tudo lhe corre mal – nunca lhe ocorreu que mais valia gastar o dinheiro a engatar alguém ou à ir As meninas, que seria o mais provável. Mas insiste em vir aqui, esperançado.
E eu preso, aqui, a aturá-lo como e fosse uma ama-seca qualquer. E tenho de ser um bom profissional, mostrar-me interessado e dizer-lhe que hoje parece mais bem disposto, a ver se assimila alguma auto-estima – já nem preciso de lhe dar conselhos.
E poderia estar a fazer algo tão melhor neste preciso momento.
E o homem já nem ouve nada, só fala. De tudo e de nada. É um frustrado e faz-me sentir o mesmo é irónico, deve ser contagioso.
Não me pagam o suficiente para isto.
Parece que o tempo se preguiça e insiste em adiar o fim do suplício. E eu farto-me, mas
Mantenho um ar sério
cruzo uma perna, descruzo,
cruzo a outra,
limpo os óculos, olho pela janela ( já chove);
canso-me.
Se ao menos ele se calasse por um pouco…
Sou bem capaz de lhe receitar calmantes para tomar antes de vir para aqui, pode ser que fale menos ou, caso seja um tipo mesmo porreiro, exagere na dose e tenha de ir para ao hospital. Era um favor que me fazia – e a ele também, entenda-se.
Mas estou farto.
E continuo desesperadamente a tentar afugentar as imagens de mulheres nuas que tão docemente se intrometem na minha mente.
Tempos houve em que quis mudar de emprego, tirar um curso qualquer e ficar famoso, algo assim. Mas é sempre complicado, já não bastava a falta de sexo e ainda tenho de me preocupar em pagar as contas. Eu é que preciso de terapia, não este rol de imbecis que entram por aqui adentro, mas não. E no meio de tanta gente, tinha logo de calhar a mim a sina de o aturar.
Preciso de um milagre, preciso mesmo de um milagre.
Caso contrário vou continuar a ir para casa com vontade de dar um tiro na cabeça; já não faltou muito, confesso, faltou mesmo muito pouco, para dizer a verdade. Só a arma, entenda-se. Mas até lá vou ter de continuar à espera do estupor de um milagre…
- …Bem, sô doutor, até para a semana à mesma hora.
E só me apetecia rebentar
- Lembre-se de pensar positivo – disse-lhe
E então percebi que não passava desta noite.
P.
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Estou mesmo em Direito.
"Na tentativa de fundar a teoria da desconsideração extralegal, a Doutrina tem recorrido a construções variadas, dentro dos quadros do instrumento conhecido da concretização de princípios e de orientações gerais. Numa perspeciva subjectivista exige-se, como fundamento da desconsideração, o abuso consciente e intencional, com fim ilícito, da separação pessoal e patrimonial entre a pessoa colectiva e o seu sócio ou mesmo o seu instituidor. Numa perspectiva objectivista, pretende-se dispensar a demonstração da consciência e intencionalidade subjectivas para desconsiderar a personalidade colectiva. Argumenta-se com a dificuldade da sua prova e ainda que o resultado juridicamente indesejável constituiria, só por si, fundamento suficiente para a desconsideração, ainda que sem consciência nem intencionalidade subjectiva.A objectividade da desconsideração facilita consideravelmente a sua aplicação."
Tenho teste quarta-feira.
J.
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Depois do Riso parte II (Coroação de um Coração)
E depois do riso?
Depois do riso há o Sol, a lembrança doutros tempos da inocência. Depois do riso, há a simplicidade.
Depois do riso as coisas sabem melhor. De maneira diferente. No ar, não se sente mais o cheiro a ozono, e tudo
Tudo nos lembrará do Verão, do fim do Verão, ou do início da nossa estação favorita.
Depois do riso há a simplicidade. Já o disse, mas sei-o, que é verdade. Depois do riso, desse riso que advém depois de termos percebido a piada escondida da vida, tudo parecerá fazer mais sentido. Coroar-se-ão corações fúlveos, cheios de ar e fogo etéreo, para serem gastos, apreciados, sorridos como quiserem. As pessoas cantarão, baixinho; e de tudo o que me lembrarei será os dias da minha juventude – perdida, entre o fim de uma canção mais especial ou outra, perdida, na boca de alguém que um dia quis chamar o meu nome para eu voltar para trás; perdida, porque a simplicidade perde-se, e perdida, Perdida porque, depois do riso, tudo é
Mais simples.
Tudo é
Depois do riso
Tudo faz o sentido que sempre se tinha suspeitado. Mas depois
Depois há o resto, o fim do dia
O fim da vida
O fim das amizades
De um amor que um dia se julgou eterno
Depois do riso há a lembrança desse riso
E como será, então, esse riso?
Queria espraiar-me, demorar a dizer tudo o que, reverberando entre estes momentos único, ousei “sentir”…
Mas depois do riso, não há a necessidade de sequer explicarmos nada
Alongarmo-nos em filosofias
Dizermos nomes que nos digam algo, sem parar…
Porque
Depois do riso
Há
J.
(Crowning of a heart.)
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O paciente.
Chamaram pelo meu nome, como se eu fosse capaz de resolver as coisas. Falhado – disseram. E aproximei-me.
[- Sr. Correia, pode entrar.]
Levava na mão um comprimido colorido e no bolso das calças um pequeno papel dobrado que dizia apenas: Vai tentando. Entrei na sala seguinte, deitei-me na poltrona e disse-lhe:
- Está a ver este relógio? Deu-mo ela antes de partir. Faz sol, não faz?, Ontem à noite fiquei à janela à espera que a lua se desintegrasse; tenho feito bastante isso, sabe, ainda assim não consigo deixar de pensar que está para breve. Mas dizia eu, este relógio faz tic tac sem parar como se me quisesse dizer que ela voltará. Provavelmente, não, mas um homem tem de se agarrar a estas pequenas coisas para ter forças para acreditar, não é?, caso contraio uma pessoa desiste. Ah, mas eu tenho esperanças – a propósito, antes que me esqueça, a medicação está a acabar -; o meu avô, por exemplo (que Deus o tenha), passava as manhãs da sua reforma fechado no sótão, feito carpinteiro, a tentar construir carrinhos de madeira e coisas assim. Acabava sempre por desistir, mas a madeira ainda dava para pôr na lareira e aquecer a casa. Tinha uns olhos azuis bem grandes, o pobre do velho. Era eu puto, de alguns sete anos, e ao princípio achava estranho mas lá aprendi que há algo a retirar de bom de todas as experiências. Nesse aspecto ter perdido o emprego fez-me bem. Lá percebi que ganhar muito dinheiro não faz bem ao espírito de uma pessoa. Perdi muita coisa, é verdade, mas agora já me sinto assim a modos que a recuperar forças, mas bem se sabe que nestas coisas da vida cedo ou tarde volta tudo sempre ao mesmo por mais voltas que um tipo dê. Esta semana, aqui há coisa de três, quatro dias, estava eu no trânsito com a estrada toda atafulhada de carros e de cá para mim pus-me a pensar: é verdade, odeio muitas coisas, mas ainda assim tenho um canário que me faz companhia e comida para pôr na mesa. De resto, as coisas lá vão melhorando. A tipa loira do 3º frente foi-se embora, portanto já não tenho de ouvir as suas noitadas orgásmicas de sexo danado. Aquilo é que era acção, hem. Mudou-se agora para lá uma família assim mais escurinha. Ao jantar, por causa daquela coisa toda das mudanças que dá sempre uma trabalheira, coitados, fui lá perguntar-lhes se queriam jantar em minha casa, assim para lhes mostrar que não sou um tipo preconceituoso nem nada. E eles até estavam a ser muito simpáticos mas quando lhes disse que ia fazer bifes de vaca (estavam bastante bons, até) fizeram assim um ar acabrunhado, disseram que não comiam carne de vaca e coiso e tal e educadamente lá me fecharam a porta na cara. Devem ser uns desses vegetarianos que para aí andam, não sei bem. Mas pronto, que se há-de fazer. Cada um sabe de si, não é assim? Ups, ‘tá na hora. Bem, sô doutor, até para a semana a mesma hora.
- Lembre-se de pensar positivo.
Saí do consultório, fiz olhinhos à recepcionista antes de sair (talvez para a semana arranje coragem para a convidar a jantar fora, um cinema, quem sabe…), desci as escadas do prédio. Ao chegar à rua percebi que chovia e ainda por cima não tinha trazido chapéu.
P.
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Recuperado de 25 de Agosto, 2005
A cabeça do centauro de prata com um corno na testa, emergiu do rio puro.
Que visão.
Nunca mais dormi com o medo das saudades. As promessas do meu assassinato, eram feitas com as minhas mãos. E eu ria-me.
E então, descalços, os filhos da lama começaram a existir. Saindo dos seus refúgios no sonho, perseguiam as mulheres em busca de mães. E ninguém, ninguém os agraciou com esse tormento.
Ninguém. Um desastre de córneas, o fumo por todo o lado, as almas a escorrerem como rios, ou onomatopeias.
Metal pesado. E o mel que escorria das casas de papel endureceu, e os ecos do vento gargalhavam uma acidez incompreendida. Porque não mudavam mais? Porquê o medo da loucura? Os sinónimos…
Eram Ainda Mais Criação. Uma pedra de vida no meio do oceano, uma ilha
de excrementos. E tudo éramos animais. Criam-se casas multi-hexagonais com moscas lá dentro numa estranha
saudação ao amor. E então eu –
Eu tusso. Eu tusso sem parar. Sem parar para pensar porque tusso. E o desconhecimento
de todas as mulheres vem à tona; aflora-se num fogo de roupas
Treme.
Torna estáticos os momentos da imprevisibilidade da infinitude dos céus sobre os nossos destinos.
Irreais.
Apenas mais uma visão,
J.
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Que aconteceu à fúria?
Lá fora, entre minas abertas à decomposição das cores cinzentas do fim do Inverno, alguém sabe. E toda a gente foge, à sua própria resposta. Ontem vi histórias a serem contadas, amores que desapareceram e outros que renasceram perante mentiras bem desentrançadas; existiram os ocasionais espancamentos, mas a invisibilidade da cidade apagará os traços de sangue do chão – chove, mesmo agora. Não são casos que procure estabelecer – desde quando é que, de repente, as palavras certas começaram a ser ditas…? Todas, por qualquer pessoa? São incríveis, todas as histórias que ouvimos, que sentimos, no ozono que passa pelo ar. Mas, que aconteceu à fúria? Por vezes as perguntas não significam nada. Mas, se as fizemos, se elas surgiram na nossa cabeça como uma dor que precise de ser destruída, apagada como uma cor que se desvanece na escuridão da mente – porque é que não havemos de acreditar que ela é tão real quanto tudo o que de resto se passa?
O que é que aconteceu à fúria? A toda esta fúria, que faziam os homens serem selvagens na forma lúcida e cheia de sentimento com que viam a vida, e as mulheres corajosas e únicas como se cada uma tivesse o seu nome apenas, irrepetível? “foi tudo tão real, tão demasiado real”, gosto de pensar por vezes, lembrando-me dessa música. Que aconteceu à minha própria fúria, que me fazia querer morder todos os dias com um apetite de gigante, maior que tudo?
Súbito ele ri-se, encontrou-a há alguns dias no mesmo sítio, sempre que lhe passava cuspia-lhe ou dava-lhe uma esmola sob a forma de um olhar. E eu penso que já vi isto, ou pelo menos que já imaginei isto – essa fúria que desapareceu levá-lo-ia a …a? Quais são as histórias lúcidas que um dia todos inventámos?
Algumas pessoas não sabem pela primeira vez que sentiram o sabor ardente inconfundível da paixão, do desejo e quem sabe, do amor, em simultâneo, mas eu sei, e tinha cinco anos. Uma miúda cigana com uns sete ou oito entra na mercearia em que eu estava, com os meus pais e dava a mão à minha mãe, e nem reparou em mim, suja, com a roupa completamente cagada, e tudo o que vi foi um vislumbre, mas ela pareceu-me mais linda, mais bonita do que tudo – e lembro-me que, de repente, tive pela primeira vez um pensamento criativo, fora de tudo, ou do mundo – quis largar a mão da minha mãe, agarrar na dela, e fugirmos para um sítio onde poderíamos estar só os dois, e ela pudesse lavar-se, para ficarmos juntos para sempre.
Nunca achei piada a esta lembrança, porque sempre lhe conferi a seriedade de um senão. Pergunto-me que tipo de pessoa teria sido eu se tivesse sentido desejo, pela primeira vez, por uma pessoa diferente – por uma miúda normal da escola, por qualquer tipo de criança mais normal. Ao invés disso, escolhi ficar completamente angustiado por uma miúda cigana porca, suja, e de olhos grandes e cara grave, enquanto sentia as entranhas quentes, e a humedecerem-me os olhos. Que aconteceu a essa fúria em todos os outros lados? Que aconteceu ao deixar tudo para trás, procurarmo-nos enquanto corremos desenfreados por uma cidade ou por qualquer outro lugar tentando, ao encontrar o nosso objectivo, encontrarmo-nos a nós próprios?
Exemplos. Fugir, ter com Ela, com Ele, observar a realidade demasiado perto, e por isso ter medo da loucura, que ronda, ou rondava.
A vida é bela. É a única conclusão possível.
O que vou fazer com ela, antes de a matar com a banalidade da condição da minha existência, ainda não sei. Sei que, uma vez, com cinco anos, escolhi amar durante cinco minutos uma miúda cigana, e nunca mais me esquecer dela.
E acredito que, por causa disso, me tornei diferente, e sou diferente.
Hoje.
Lembrando-me da fúria que um dia senti – e que nunca tive coragem para soltar.
J.
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carfunilando os eleutérios
há dias em que queremos imenso escrever posts, mas depois pensamos "mas eu só vou dizer merda..." então, mais vale não escrever, ou então, escrever isto.
Pois. Acho que talvez só exista mesmo uma alternativa.
J.
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hm...?
hoje, enquanto percorria os meus dossiers, encontrei no mais recente uma frase, datada das seis e meia da manhã do dia anterior e desse mesmo dia, o que provava que que ainda não me tinha deitado. Foi escrtia na aldeia dos meus avós e não faço a mínima ideia o que quis dizer com aquilo. De Outubro, a meio da folha, e assinada por baixo, apenas dizia:
"a frequência da laranja é devido ao Plano Infinito."
Ainda estou para saber o que queria dizer com aquilo, mas parece-me que foi escrita para não me esquecer de qualquer verdade universal de que, alterado ou não, me tenha apercebido.
Paguem-me almoços grátis,
J.
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